Onde a Suíça é mais francesa

Onde a Suíça é mais francesa

Na parte mais ocidental do país alpino, há uma fração quase tão gaulesa quanto uma baguete ou uma canção de Édith Piaf.

Por Walterson Sardenberg Sº

Todos os dias, de manhãzinha, ao menos 90 mil moradores da França atravessam a fronteira e seguem para a Suíça, onde trabalham. No fim da tarde, retornam para casa, fagueiros. Basta fazer o trajeto de carro ou de trem, sem agruras no tráfego ou entraves de aduana. O fenômeno da população flutuante, mais fluente próximo à cidade de Genebra, é fácil de compreender. Simples: os salários são mais altos na Suíça, onde ninguém ganha menos de 3,5 mil francos suíços por mês – algo em torno de US$ 4 mil –, ao passo que sai bem mais em conta morar na França. Para facilitar ainda mais o dia a dia binacional, esses trabalhadores itinerantes dão expediente em um trecho da Suíça muitas vezes quase tão francês quanto uma baguete. Ou uma envolvente canção de Édith Piaf.

O quase fica por conta das diversas peculiaridades suíças. Por exemplo: em cada rua, em cada esquina, em cada escola, em cada prédio público desse país com 70% do território ocupado por montanhas, topa-se com uma tremulante e bem visível bandeira nacional, aquela com a cruz branca sobre o fundo vermelho. Chega a entediar.

À primeira vista, parece só uma demonstração de alta estima de uma nação com muito para se orgulhar. Afinal, entre outros números invejáveis, a Suíça acena com o terceiro melhor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e a terceira mais alta expectativa de vida (82,6 anos), além de picos alpinos com mais de 4 mil metros de altitude, tão deslumbrantes quanto a atriz Ursula Andress (sim, suíça) no auge da sedução. Mas, observando com mais atenção, a exaustiva exibição da bandeira tem também uma explicação menos óbvia. Ela é uma maneira explícita de imprimir unidade a um país com quatro regiões que não falam a mesma língua. No sentido lato da expressão, claro.

SWISS CITY MONTREUX Schweiz. ganz natuerlich. Abendstimmung ueber dem Schloss Chillon, Veytaux. Switzerland. get natural. Evening mood by the Chillon Castle, Veytaux. Suisse. tout naturellement. Ambiance du soir par le Chateau de Chillon, Veytaux. Copyright by: Switzerland Tourism - By-Line: swiss-image.ch/Markus Buehler-Rasom
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Abendstimmung ueber dem Schloss Chillon, Veytaux.
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Ambiance du soir par le Chateau de Chillon, Veytaux.
Copyright by: Switzerland Tourism – By-Line: swiss-image.ch/Markus Buehler-Rasom

A Suíça já foi chamada de nação-Berlitz. Ou de Babel alpina. Eis um dos motivos de a sede europeia da Organização das Nações Unidas ter sido instalada no país. Estima-se que 63,5% dos moradores falam o idioma alemão – ou um dos 15 dialetos suíços-alemães. Outros 22,5% se expressam em francês, enquanto 8,1% recorrem à língua italiana. Há ainda a diminuta parcela de 0,5% que conversa em uma das cinco variantes das línguas reto-romanas, também chamadas de romanche. Sem nos esquecermos dos idiomas manejados no cotidiano por imigrantes, do sérvio ao português. Tamanha diversidade poderia gerar arroubos de dissidência política, como sói ocorrer em outros países de consideráveis diferenças linguísticas internas, casos do Canadá e da Espanha, em que reina uma gritante algaravia. Mas não na próspera, discreta e organizadíssima terra dos bancos sigilosos.

O território da Suíça, de tamanho similar ao do estado do Rio de Janeiro, é dividido em 26 cantões, o equivalente aos nossos estados da federação. Só em cinco deles fala-se o francês no dia a dia: Friburgo, Valais, Berna, Vaud e Genebra. Nos três primeiros, todavia, também se pratica o idioma alemão e os tais dialetos suíços-alemães. São bilíngues. Assim, apenas os cantões de Vaud (670 mil moradores) e Genebra (230 mil) se expressam exclusivamente em francês. No total, uma população menor que a de Campinas (SP).

Esses dois cantões ocupam um cantinho, com o perdão do diminutivo, de somente 3.500 quilômetros quadrados, bem acomodado nas encostas das montanhas suaves e nos vales do extremo oeste suíço. Nesse espaço acanhado, que parece administrado por algum virginiano obsessivo-compulsivo, com fixação por assepsia e arrumação, cabem inúmeras atrações. Nele estão três das mais cativantes cidades da Suíça: Lausanne, Montreux e Genebra.

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Fondue de chocolate? Ora…

Contando apenas a região das duas primeiras, despontam mais de 25 estrelas no Michelin. Elas cintilam em restaurantes como o Brigitte & Benoit, em Cressier, nas cercanias de Lausanne, ou a casa da chef extraordinaire Anne-Sophie Pic, instalada no hotel Beau Rivage. Esse hotel majestoso, inaugurado em 1867 em Lausanne, é desde então dotado de quatro suítes presidenciais, para a eventualidade de receber quatro chefes de Estado ao mesmo tempo. Em março, por sinal, ali se encontraram, para acertar as bases de um acordo nuclear, o secretário de Estado americano John Kerry e os potentados do Irã.

Lausanne, Montreux e Genebra têm bem mais em comum do que os laços francófonos. As três se acomodam à beira de um lago em formato de meia-lua, o Léman – o Lakus Lemmanus dos idos do Império Romano. É o maior da Europa Ocidental. Tem 72,8 quilômetros de extensão e chega a 309 metros de profundidade. No passado, padeceu de alguma poluição. Hoje, está tão transparente quanto jamais se revelou a política bancária dos arredores. Os banhistas pululam – e pulam – em águas mais serenas que a economia suíça. Isso se deve em boa parte a rigores que chegam a soar folclóricos. Dos 200 mil habitantes de Genebra, por exemplo, somente oito felizardos têm a permissão para pescar nas águas do lago Léman, onde fisgam, sobretudo, os saborosos e delicados peixes perche (menorzinho) e ferá. Na culinária local, ambos têm mais serventia que canivete suíço Vitorinox nas mãos de escoteiro.

Tanto o perche como o ferá fazem entrosada parceria com o vinho branco preparado com a uva Chasselas, típica dessa fração da Suíça. É feito para ser bebido jovem. Um dos pontos mais recomendáveis para degustá-lo é Lavaux, onde as parreiras são plantadas em degraus, nas encostas de frente para o lago Léman. A mesma casta desse vinho é batizada – no bom sentido do termo, por favor – de Fendant, quando plantada no cantão de Valais. Ali, ela cresce mais encorpada, embora mantendo a acidez das uvas brancas das paragens frias e montanhosas.

A Fendant é a aliada ideal de dois pratos nascidos e criados na região, malgrado a fama internacional de terem sua gênese na cozinha francesa: a raclette, preparada com o queijo do mesmo nome – e com denominação de origem do cantão de Valais —, e a fondue. Como se percebe, a Suíça francesa não é uma mera edícula da cultura gaulesa. Tem o seu próprio perfil. Revela o seu próprio terroir. Já a fondue de chocolate, esqueça. Não é nem suíça nem tampouco francesa, mas uma oportunista criação nova-iorquina. Considera-se gafe imperdoável pedi-la nas redondezas alpinas.

As duas Lausanne

Se é verdade que, nesse fragmento da Suíça, o espírito gaulês está tão presente quanto em um gibi do Asterix, a acidentada Lausanne nem sempre pode ser cotejada a uma genuína cidade francesa. Até porque são duas. Há a Cidade Alta (Haute Ville) e a Cidade Baixa (Basse Ville ou Ouchy). A uni-las, o mais íngreme trem do planeta. Comandado por piloto automático, ele leva a um centro labiríntico, em que a história toma o visitante pelas mãos a cada viela. No alto, lá está a Catedral de Notre-Dame, iniciada em 1170 e concluída em 1215, a maior construção gótica do país. Ao menos 75% de seus vitrais ainda são originais, algo passível de acontecer apenas em um país decididamente neutro em períodos bélicos – e em que se idolatra o general Henri Guisan, nascido no cantão de Vaud, célebre por preparar a Suíça contra a invasão nazista, mas sem mover um dedo sequer em demonstração de força.

Switzerland. get natural. Geneva, the international congress city. Restaurants and shops at the Bourg-de-Four square in the historic center.  Schweiz. ganz natuerlich. Genf, die internationale Kongress-Stadt. Laeden und Bistros an der Place du Bourg-de-Four im historischen Zentrum.  Suisse. tout naturellement. Geneve, cite internationale de congres et conferences. La place du Bourg-de-Four dans la vieille ville avec ses bistros et magasins.  Copyright by Switzerland Tourism                  By-line: swiss-image.ch/Stephan Engler
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A Cidade Alta de Lausanne é, ainda, o único ponto da Suíça francesa com animação noturna no decorrer do ano inteiro. Ela se concentra na área de Le Flon. Dali, de taça em taça, os jovens mais animados vão terminar a noite debaixo da ponte. Melhor explicar. Em alguns dos 19 arcos da Grand-Pont, de 1844, perfilam bares próprios para renitentes ou retardatários.

Já na Cidade Baixa, Lausanne assemelha-se a Genebra, com os verdíssimos jardins que margeiam o lago. Uma visita ao Museu Olímpico, tão interativo quanto um videogame, deve constar do roteiro. Não só para ver peças gregas de 400 anos a.C., como para constatar que o espaço reservado ao Brasil para divulgar a Olimpíada do Rio de Janeiro é de um sufocante vazio.

Frank Zappa e Freddie Mercury

Genebra, fincada numa extremidade do lago Léman, não costuma render “vivas” de jovens visitantes. É pequena, pacata e de alto custo de vida, por onde circulam funcionários de elite de alguns dos 200 organismos internacionais sediados na cidade. Alguns deles: Cruz Vermelha, Organização Mundial da Saúde e Organização Mundial do Comércio. A fama de urbe circunspecta remonta a 1536, quando aqui se alojou o severo moralista Johannes Calvin, o Calvino, um dos próceres da Reforma Protestante, para quem cantar, dançar ou usar joias não condizia com a fé cristã. Usar relógio, podia. Com ele, os fiéis não chegavam atrasados aos cultos.

Dessa rara benevolência de Calvino, dizem, surgiria outro culto – o dos suíços pela alta relojoaria. No filme O Terceiro Homem, dirigido por Carol Reed em 1949, o personagem vivido por Orson Welles desanca os helvéticos, ralhando que, em 500 anos de paz e democracia, a Suíça ofereceu à humanidade uma única invenção: a do relógio-cuco. Bobagem. O relógio-cuco é criação alemã. Além disso, a frase sarcástica do filme perdeu, em 1989, o que lhe restara de efeito. Naquele ano, no Cern (Centro Europeu de Pesquisas Nucleares), em Genebra, surgiu uma invenção que, é bem provável, mudou o mundo na proporção das Grandes Navegações e da Revolução Industrial: a internet.

Se ainda evidencia o viés calvinista, Genebra também tem seu lado, digamos, Calvin Klein. É uma cidade elegante – e linda. A beleza da sucessão de prédios de sete andares emula a Paris do século 19, depois de refigurada pelo prefeito barão Haussmann. Da irretocável promenade de Genebra, diante do lago, divisam-se os veleiros riscando o verde-esmeralda das águas, os adoráveis barzinhos ao ar livre e os cisnes passeando com a precisão dos relógios de rua, da marca Rolex. Ao fundo, os picos de neve eterna – e, nos dias claros, o Mont Blanc.

Em comum com Genebra, a festeira Montreux também está incrustada em uma extremidade do lago Léman – justamente naquela oposta. Mas esta não é uma cidade de funcionários graúdos e sisudos ou de turistas de negócios. Seu cassino, sua rede hoteleira, seus restaurantes de culinária mediterrânea trazem à luz a atmosfera animada e chique da Riviera Francesa. Tal como na Côte d’Azur, o verão é a época correta para jogar as amarras nessa cidadezinha de 25 mil moradores e tão versátil quanto o seu Festival de Jazz, nascido em 1967 e absolutamente democrático em matéria de gêneros musicais. Entre as atrações deste ano, estiveram Gilberto Gil e Caetano Veloso, Chick Corea e Herbie Hancock, e Tony Bennett e Lady Gaga, para ficar apenas nas duplas.

Em dezembro de 1971, quando gravava o álbum Machine Head em Montreux, o longevo grupo britânico Deep Purple presenciou o incêndio do cassino, no decorrer de um show de Frank Zappa. Foi a inspiração para “Smoke on the Water”, o rock de riff hipnótico que fala da “fumaça sobre a água” – no caso, as águas do lago Léman. De frente para a mesma superfície está agora a estátua de Freddie Mercury, o roqueiro que viveu suas melhores férias e seus últimos dias ali, um monumento agora tão visitado quanto a mais famosa atração do balneário: o Château de Chillon, castelo medieval que parece ter sido desenhado por uma criança, soerguido à beira do lago.

A magnífica Crans-Montana

Por questões não só de dimensões, mas também de altitude e latitude, as mais conhecidas estações de esqui do país estão na Suíça alemã. Nem por isso a área de ascendência francesa carece de chamarizes do gênero. Estão todos no cantão de Valais. O destaque seria Zermatt, no sopé da impressionante montanha Matterhorn, não fosse um lugar em que se fala suíço-alemão. Se a ideia é conhecer um quinhão quase tão francês quanto o Iluminismo de Jean-Jacques Rousseau – aliás, um suíço –, prefira Crans-Montana.

Em favor dessa estação a 1.650 metros de altitude pode-se desfilar uma coleção de argumentos. Com uma população de 4,5 mil viventes, o lugar prima pelo aconchego. Que o digam o cirurgião plástico Ivo Pitanguy e o ator Roger Moore, que ali compraram casas e passam férias com vistas para o Mont Blanc e o Matterhorn, em um cenário de A Noviça Rebelde. Quanto à estação de esqui propriamente dita, tem 160 quilômetros de pistas, dos mais sortidos níveis de dificuldade.

Mesmo no verão, Crans-Montana atrai. A geografia brindou-a com um platô antes do pico, tão horizontal quanto uma mesa. Em 1906, surgiria o primeiro campo de golfe. No momento, alguns dos maiores artífices desse esporte também têm casas na estação de esqui, casos de Angél Gallardo, Sergio García e Adam Scott. Compreende-se. Crans-Montana sedia uma das etapas de um dos principais torneios do golfe, o Omega Masters Championship.

Um dos maiores argumentos em prol de Crans-Montana é o hotel Guarda Golf. Não apenas pelo conforto e pela chancela do grupo The Leading Hotels of the World. Mas principalmente pelo fato de estar sob o comando da paulista Nati Felli, que se formou em hotelaria na escola Les Roches, nos Alpes. Em parceria com o marido, o ítalo-suíço Giancarlo Felli, ela dirige um estabelecimento sem par. Trata-se do único cinco estrelas do país que junta sob o mesmo teto o rigor do serviço suíço, a natural elegância francesa e o melhor da hospitalidade brasileira. O que, convenhamos, não é pouco.

Não mesmo.

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