O cheiro dos livros atrai. Ou repele. Curiosamente, os especialistas descartam as obras mal saídas do prelo.
Por Ronaldo Bressane
Sempre que me pedem para enumerar as três coisas que levaria para uma ilha deserta, penso em três cheiros: o do cangote do recém-nascido, o da vulva da mulher amada e o das páginas de um livro – tanto faz se novo ou velho. Sim, poderia levar diretamente o bebê, a amada e a biblioteca, só que o bebê cresceria e viraria um adolescente pentelho, a mulher cedo se aborreceria com minhas manias e criaríamos idiossincrasias grossas e os livros seriam corroídos pela maresia e pelo desespero náufrago. De modo que, a crer-se na possibilidade de manter um aroma indelével e indistintamente, eu meteria na bagagem de Robinson Crusoé três garrafinhas com tais cheiros – ou quem sabe em um e-mail (se já existem estudos para enviar odores pela internet, então por que não se pode manter um cheiro pra sempre, reservado na nuvem?).
Pensando melhor, só levaria cheiro de livro mesmo, que em si contém todos os outros, e, quando chovesse em minha ilha, o conjugaria com outro odor sagrado: petrichor — cheiro da terra molhada de chuva e uma das palavras mais bonitas da língua portuguesa, ainda não dicionarizada. Não sei exatamente quando surgiu o meu hábito – penso que antes das vulvas e dos bebês – de enfiar o nariz entre as páginas de um livro e aspirar fundo, com os olhos fechados. Minha memória mais antiga indica as lindas lâminas plásticas de anatomia humana publicadas em um volume da Encyclopaedia Britannica (onde muita gente também teve seu primeiro contato com vulvas). Elas faziam com que aquele livrão tivesse um aroma ainda mais particular. Anos depois, os cheiros de livros seriam intrinsecamente relacionados à ideia de prazer, fuga, aventura, exílio, delírio, angústia ou transcendência ou tudo o que estivesse relacionado entre a capa e a contracapa – contos policiais, épicos, poesia, quadrinhos, fotos, catecismos de sacanagem. Sim, um cheiro de livro pode conter tudo, como um Aleph de passadas e futuras cafungadas, suspiraria Jorge Luis Borges.
Dicionários velhos
É comum o cheiro do livro instigar o espírito literário. Literatura, arte que na verdade se pratica com a bunda – mais especificamente a capacidade de ficar sentado por horas (à parte ascetas como Ernest Hemingway ou Philip Roth, que escreviam em pé) —, é filha do corpo, antes que do espírito. O cerebral Marcel Proust não teria escrito sua saga Em Busca do Tempo Perdido caso se esquecesse do gosto de uma madeleine provada na infância; metade da crônica de Nelson Rodrigues desmoronaria sem os palitos de um Chicabon de chocolate; mas, ao contrário, Borges, que praticamente viveu dentro de uma biblioteca e enxergava mal, só reconhecia o cheiro do pampa por ter lido sua descrição nas páginas do Martín Fierro.
“Desde pequeno me interessei por livros e uma de minhas primeiras lembranças era pegá-los, não para lê-los, porque não sabia, mas para ver-lhe as estampas e, principalmente, para cheirá-los”, contou certa vez o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro (Viva o Povo Brasileiro). “Conservo esse hábito até hoje e cheguei a ler livros não tanto por seu conteúdo, mas pelo seu cheiro. Aprecio muito dicionários velhos, que me parecem ter um odor exclusivo. Sou capaz de ficar cheirando livros durante horas, com breves intervalos para uma leiturazinha de alguns minutos.” O escritor e designer Joca Reiners Terron (Do Fundo do Poço se Vê a Lua) também relaciona seu amor à literatura ao odor da leitura: “Fui exposto ainda na infância aos fungos alucinógenos que nascem no meio das páginas de livros e gibis velhos. São fungos altamente tóxicos, minúsculos, que nascem da tinta impressa na microtextura das páginas úmidas e contaminam o leitor. Mais poderosos que o LSD, proporcionam viagens inesquecíveis. Só um problema: viciam”, alerta. O bibliófilo e poeta Antonio Carlos Secchin (Todos os Ventos) vai além: “A atração se dá pela conjugação do cheiro bom e acolhedor da madeira antiga, o das estantes, e o transformado em folha de livro…”, explica. “Diria que o cheiro melhor não é de livro, mas de um século: o 19. São volumes que, em geral, sensorialmente me agradam, não apenas pelo olfato: fazem bem à visão e ao tato. Se a isso somarmos o discreto ruído no ato de virar as páginas, só faltaria comê-los”, exagera Secchin.
Compreende-se quem prefira o cheiro de livros antigos, ou usados – embora seja complexo determinar o uso de um livro –, ao dos recém-saídos do prelo. É esse o caso do jornalista Ricardo Lombardi, proprietário do sebo Desculpe a Poeira, em São Paulo. “Prefiro o cheiro de uma biblioteca pública ao de uma livraria de shopping center “, diz. “Quando penso em cheiro de livro, vem à mente o odor de naftalina e mofo da minha Encyclopaedia Britannica da adolescência (que está à venda, por sinal)”, anuncia o sommelier de livros. Para o fotógrafo e escritor J.R. Duran (Cidade Sem Sombras), só se adquire um livro após toda uma experiência sensorial. “Cada vez que abro um livro, cheiro. Pego o exemplar, sinto o peso, pois tem de ser bem balanceado entre as páginas de dentro, a capa e a contracapa. Percebo se tem guarda boa, espaço bom pra ler, como é a tipografia, e só aí enfio o nariz nas páginas para sentir se é um objeto digno da minha companhia. Há livros mais e menos agradáveis, assim como os seres humanos: podem nascer limpos, e depois, com o tempo, feder”, intriga o fotógrafo.
Bactérias misteriosas
De fato, há quem reclame do cheiro dos livros novos, e até deixe de comprá-los por causa do aroma. Consideradas por este modesto bibliômano como detentoras dos buquês mais exuberantes nas livrarias nacionais, as revistas Zum e Serrote – na verdade livros de arte, pelo cuidado editorial – já receberam muitas críticas de leitores. “A Serrote volta e meia é alvo de reclamações: um sujeito tinha crises de espirro toda vez que abria a revista e cancelou a assinatura por conta disso”, diz Daniel Trench, diretor de arte do Instituto Moreira Salles, que edita a publicação especializada em ensaios e ficção. “Como os queijos, há uma ação do tempo e suas bactérias misteriosas que dão aquele buquê místico de sebo sobre os livros”, diz a outra editora de arte do IMS, Elisa von Randow, responsável pela revista fotográfica Zum. “Quanto mais novo, mais cheiro de gráfica… Quando a tinta perde sua predominância volátil, talvez o papel siga trabalhando, absorvendo ao longo dos anos tinta, cola, pó… e ácaros.” Trench lembra que o papel também é peça importante nessa equação. “A Serrote varia muito seu cheiro a depender da quantidade de pólen que usamos. Quanto mais poroso, mais intenso e duradouro é esse cheiro inicial – que vai mudando com o tempo.”
Grande parte da origem do cheiro dos livros é do papel. “Livros de texto, que quase não têm tinta impressa sobre o papel, só cheiram mesmo à composição do papel e são mais suaves do que os supercobertos com tinta”, afirma Aline Valli, produtora gráfica da Cosac Naify – editora que pariu alguns exemplares bastante olorosos, no sentido químico. “Pra mim, são esses os que mais me remetem ao primeiro dia de aula, com os livros novos chegando pra começar o ano escolar”, ri. ” Você percebe facilmente quando cheira um livro com papel couché (revestido e liso) e quando cheira um outro com papel não revestido, como os papéis chamados offset“, dedura também Lilia Góes, produtora gráfica do Instituto Moreira Salles.
“O papel responde por 3/4 do cheiro do livro. Quando o miolo do livro é feito em papel offset pólen de boa qualidade e a maior parte das impressões tem textos, ele se candidata a uma fragrância agradável”, aponta Jorge Figueiredo, colorista da gráfica Geográfica. Ele diz que os livros com maiores áreas gráficas impressas têm o cheiro da tinta em evidência. Bons exemplos são as obras em couché com imagens ou fotos. No papel offset polén observa-se uma textura mais porosa, com fibras expostas, que resulta no cheiro de papel de verdade; já o papel couché leva, no processo de acabamento, um revestimento de cargas minerais que transforma sua aparência em brilhante ou fosca. “Esse revestimento isola as fibras do papel, deixando o livro com cheiro artificial – pois o odor em destaque será o do revestimento e o das tintas”, completa.
Vick Vaporub
E por que algumas publicações cheiram tão mal? “Há tintas com cheiro, para lembrar sabores, por exemplo, ou perfumadas. Mas o comum é que o odor ruim venha dos solventes. Papel reciclado fede por causa deles. Em jornais ou revistas o determinante dos cheiros são as tintas”, diz Vanderley Mendonça, poeta (Iluminuras), produtor gráfico e editor dos selos Demônio Negro e Edith, de baixa tiragem e acabamento artesanal. Revistas que usam papel reciclado costumam ser criticadas pelo odor sulfúrico que empesteia a leitura (ao contrário da sedutora The President que o leitor tem em mãos). “Curioso perceber o quanto a Veja é catinguenta”, brinca Trench. “O cheiro é resultante dos processos químicos. Por isso, vai do agradável ao fedido”, explica Mendonça. “No processo de impressão em rotogravura as tintas são líquidas, voláteis e inflamáveis. E as resinas são solúveis em solventes orgânicos, o que resultará tinta com cheiro de Thinner. Em revistas de alta tiragem, como a Veja, o miolo é rodado no sistema de rotogravura, o que deixa o impresso com um cheiro forte proveniente do solvente orgânico retido no papel na hora da cura da tinta”, elucida o colorista Figueiredo. “Há tintas com solventes à base de álcoois, gorduras e água. É possível acrescentar aromas. Uma publicação inglesa de design pôs o cheiro do Vick Vaporub na capa, pois tinha um anúncio desse produto. Esse odor durou anos”, conta o poeta Mendonça.
“Podemos concluir que, com um bom papel offset, tintas livres de solventes orgânicos e um pouco da ação do tempo, teremos como consequência o bom cheiro do livro”, diz Figueiredo, que, embora elogie o aroma dos livros da Cosac Naify, prefira mesmo comprar obras em sebos. “Depois de algum tempo o cheiro melhora, existe algo diferente neles, não sei explicar…”, sugere o colorista. Apesar de bibliófilo, Mendonça afirma nunca ter adquirido um livro só pelo cheiro. “Só compro se for raro. E tem de ter bom design e, obviamente, conteúdo”, afirma. Já Duran refuga livros fedidos. “Com cheiro de mofo, livro de casa de praia, parece empadinha velha, não dá mesmo”, resume.
Aroma de tinta
As tintas comparecem de maneira diversa na formação do aroma. “Se você pegar uma lata de tinta offset, abrir a tampa e cheirar, sentirá um cheiro característico de tinta. Nada forte: essa tinta cheira menos que uma tinta serigráfica ou tintas sintéticas (esmaltes). Mas o papel é o verdadeiro vilão da história”, avalia a produtora Lilia Góes. Ela atribui esse odor aos processos pelos quais o papel passa, do corte das árvores às calandras (rolos prensadores) que dão forma e secagem, até o fim da linha de produção: inúmeros cozimentos, muitas vezes temperados de produtos químicos para dar melhor qualidade. O papel revestido tem sobre sua superfície uma cobertura, tipo gesso – algumas empresas usam até amido para obter essa camada –, que confere lisura e melhor qualidade de impressão. Sobre ele você consegue uma definição melhor das imagens e das cores. “Acho que essa cobertura também ajuda a inibir o cheiro forte do papel”, desenvolve a produtora. Os papéis offset (não revestidos) não têm tal cobertura. Por isso, seus odores ficam mais expostos. A cola da encadernação também tem um cheiro forte, mas passa com o tempo. “A cena mais comum no meu dia a dia é a do cliente recebendo e cheirando o livro que acaba de nascer!”, felicita-se Lilia.
O branding, claro, já chegou ao reino dos odores mais intangíveis – como de resto todos os demais domínios sagrados da arte. De olho nos consumidores de e-books saudosos de uma boa velharia, a DuroSports Electronics criou aerossóis com cheiro de livro (nas fragrâncias Livro Novo, Clássico Envelhecido, Perfume da Sensibilidade, Perfume de Engordurado de Bacon, para os que comem lendo, e Eca, para os donos de gatos – com cheiro de livro que virou assento de gato). No entanto, o órgão americano Authors Guild interpelou judicialmente a empresa e conseguiu retirar o aerossol das lojas. O produto feriria os “direitos autorais olfativos” dos autores de livros. A pendenga ainda se arrasta nos tribunais.
Cheiro de papel
A moda, claro, não ficaria incólume à intoxicação bibliófila: acaba de chegar às prateleiras o perfume Paper Passion. O editor alemão Gerhard Steidl teve a ideia, e, a convite da revista americana Wallpaper, trabalhou com o perfumista Geza Schoen para engarrafar esse cheiro particular de tinta no papel. A dupla se concentrou na simplicidade e usou só cinco ingredientes para fazer a essência, com tons de madeira – um perfume normal tem no mínimo 20 itens e pode chegar a reunir 100 ingredientes. “O cheiro do papel é seco e pesado. Não são notas fáceis de se trabalhar”, analisa Steidl. O editor convidou o amigo Karl Lagerfeld para produzir a caixa. O Kaiser da Chanel, para quem “um livro que acabou de ser impresso é a melhor fragrância do mundo”, desenhou um volume como embalagem. Dentro, textos do próprio Lagerfeld, do Nobel alemão Günther Grass e de Tony Chambers, editor da Wallpaper. Virada a contracapa, surge um compartimento secreto com um recorte no meio das páginas para acomodar o frasco. Custa cerca de R$ 200.
Os alemães têm um particular dom em recriar odores. É também germânico o perfume Vulva, cujo modelo de fragrância dispensa apresentações (o perfume pode ser encontrado em três versões: Vulva Origin, Vulva 18 e Vulva Exotic – e custa em torno de R$ 70). Infelizmente, a reportagem não teve acesso à substância – e talvez por esse motivo o texto tenha sido entregue no prazo, ufa. Fica para outro artigo. Um cheiro de cada vez, ordem nas narinas, diriam os velhos alfarrabistas. Pois, escreveu o alemão Patrick Süskind, autor do romance Perfume – História de um Assassino, “as pessoas podem fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e podem tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podem escapar do aroma. Pois o aroma é um irmão da respiração. Como esta, ele penetra nas pessoas, elas não podem lhe escapar caso queiram viver. E bem para dentro delas é que vai o aroma, diretamente para o coração, distinguindo lá categoricamente entre atração e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem dominar os odores dominará o coração das pessoas”. Hummm.