Muito pelo contrário. A Itália já comia um tipo incipiente de macarrão desde os antigos romanos.
Por Silvio Lancellotti
Um veneziano ambicioso, Marco Polo (1254-1324) tinha apenas 17 anos quando, estimulado por seu pai, Nicolò, e por um tio, Matteo, mercadores experientes nas visitas ao Extremo Oriente, decidiu acompanhá-los numa viagem até a China. Os dois irmãos já haviam percorrido duas vezes, antes, a Rota da Seda. E o rapaz se entusiasmou fervorosamente com a ideia de conhecer pessoalmente os lugares mágicos que o seu babbo e o seu zio descreviam em suas conversas caseiras.
Marco Polo permaneceu outros 17 anos longe da sua cidade. Inclusive, na região de Fanfur, se tornou um protegido do superpoderoso Kublai Khan, que o cobriu de honrarias e até mesmo lhe concedeu o comando de um vasto batalhão de soldados. Por lá, Marco Polo se fascinou também pela qualidade dos banquetes que o monarca oferecia. Dentre as iguarias que aprendeu a apreciar estaria um impasto que, de retorno à sua terra, faria questão integral de disseminar – o sagrado macarrão.
Verdade? Não, não. Simplesmente um equívoco monumental.
A Itália já comia um tipo incipiente de macarrão desde os tempos dos romanos. E, na ilha da Sicília, já se chamava de maccaruna, plural de maccaruni, uma combinação de água, vinho branco e farinha de trigo sarraceno, o Triticum durum. No idioma dialetal dos sículos, os povos antigos da ilha, maccaruna provém do verbo maccari, que significa “esmagar ou achatar com bastante força”. A rigidez peculiar dos grãos do Triticum durum exigia uma pressão descomunal na sua moagem.
Mais. Em 1154, 100 anos antes de o Polo nascer, um filósofo árabe de nome extenso e sonoro, Abu Abdallah Muhammad ibn Muhammad ibn Idris, da corte de Rogério 2º, rei de todo o sul da Bota, da Sicília até Nápoles, publicou um caudaloso tratado de geografia, intitulado Nuzhat Al-mushtáq fi Ikhtirá Aç-áták – ou “O Prazer de Quem se Apaixona por Conhecer o Mundo”. Num capítulo singular, dedicado à alimentação, Idris afirma textualmente que, entre a ilha e o dorso do pé da Bota, na região da Calábria, travou contato com uma preciosidade batizada de itriya, ou trujja, plural trujje.
É obviamente ostensiva a identificação com aletria, o macarrão mais delgado da estirpe dos spaghetti. Sempre uma combinação de água, vinho branco e farinha de trigo sarraceno, tal preciosidade, em fios finos e compridos, se desidratava ao sol e ao vento, para melhor se conservar. Ainda hoje, em determinadas plagas da Sicília, senhoras de idade se reúnem, sentadas em círculos, e comprimem, entre as palmas das mãos, bolinhas de massa, de modo a esticá-las por metros e metros. Como num concurso de habilidade, ganha aplausos a matrona que perpetra a trujja mais longa e mais elástica. Ao contrário, se humilha aquela cuja trujja se rompe no processo.
Nesse cenário, de onde surgiu a lenda que liga o macarrão à China e a Marco Polo? Sumariamente, de uma traição à verdade da história. Ao voltar do Oriente, incapaz de conter o seu espírito inquieto, se alistou no Exército de Veneza, que guerreava contra o Exército de Gênova. Acabou prisioneiro, lançado a um cárcere nos porões de um castelo da capital da Ligúria. Lá conheceu Rustichello da Pisa, um escritor de certa fama, também prisioneiro. Rustichello se interessou pela prosa do colega de desdita e resolveu eternizá-la. Redigiu um compêndio bem alentado, ao qual o Polo fez questão de registrar como Il Milione – sua homenagem a um ancestral, Emiliano. O volume rapidamente se transformou num sucesso grandioso.
Nos meados do século 16, Gianbattista Ramusio, celebrado cartógrafo e editor de Treviso, nas imediações de Veneza, decidiu republicar Il Milione. Num trecho da obra, Marco Polo comentava os seus repastos de Fanfur e lembrava a sua alegria ao deparar com uma receita inusitada de massa, cometida com sagu, a fécula que se extraía de um gênero de palmeira característica do Oriente. Sua observação: com sagu os nativos de Fanfur obtêm “mangiari di pasta assai e buoni”. Ou: “comidas de massa suficientemente gostosas”. Num rompante de infâmia, Ramusio resolveu aclarar a declaração singela do Polo. E inventou uma nota absurda de pé de página, assim explicitada: “Com tal produto se faz uma farinha limpa e trabalhada, que redunda em lasanhas e nas suas variedades, elogiadas e levadas pelo Polo, a Veneza, em seus baús”. Uma sandice. Um crime.
A BRIGADA DOS ESBANJADORES
De caráter albuminoide, muito rico em proteínas, duas das quais, a gliadina e a gluteína, apenas se casam em contato com a água, o glúten é bem mais potente no durum do que no vulgare. De todo modo, fabricantes da Ligúria encontraram, intuitivamente, uma solução capaz de robustecer os seus grãos. Adicionaram ovos à farinha e à água. Desse acréscimo advém um coloide, como uma rede que abraça as minipartículas do amido da farinha. Ao se secar a massa, essa rede se contrai, mas não se esgarça. Daí, ao se cozinhar a massa, a rede recupera e até mesmo multiplica a sua elasticidade. Por isso o macarrão cresce de volume dentro da panela.
O primeiro apetrecho facilitador da industrialização do macarrão em escala apareceu em 1480, sempre na Sicília. Um sábio meridional bolou um instrumento engenhosíssimo, o arbitriu, um cilindro de madeira com uma prensa mecânica por dentro e uma coleção de orifícios na parte inferior. Colocava-se a massa dentro do cilindro, se movia a prensa e os fios saiam, homogeneamente, pelos orifícios. Com o arbitriu se extraíam desenhos novos – mas, também se recuperavam pedaços eventualmente partidos.
Naquela época, ainda não se conheciam os spaghetti. Filhos das trujje se espalhavam com o apelido de vermicelli ou vermicellini – isso mesmo, os nada apetitosos “vermezinhos”. A expressão spaghetto, singular de spaghetti, foi cunhada em 1824 por Antonio Viviani, um versejador da Campânia, num poemeto cômico, “Li Maccheroni di Nàpoli”. Viviani sugeriu que o vermicello mais parecia um piccolo spago, um barbante miudinho. Ironia: a literatura de Viviani se evaporou. Fora da sua cidade ninguém sabe quem foi ele. A palavra spaghetti, porém, admiravelmente se universalizou.
Os nomes dos tipos de macarrão, aliás, curiosamente variam de região para região da Itália. Os agnolotti do Piemonte viram agnolini na vizinha Lombardia. Os bucatini de Roma viram fusilli na Calábria. Os tortellini de Bolonha são cappelletti na Campânia. As tagliatelle da Úmbria se tornam fettuccine no Lácio. Os gnocchi do continente se tornam malloreddus na ilha da Sardenha. Os ravioli de Florença correspondem aos pansôuti de Gênova. Os tortiglioni de Nápoles correspondem, acredite, aos fusilli do norte da Bota. É, o círculo não para de se mover, inesgotavelmente.
O primitivo procedimento de desidratação ao relento perdurou até o início do século 20 – com todas as complicações inerentes por causa de alguma chuva ou da umidade excessiva do ar. Em 1919, enfim, um artesão mecânico de Torre Annunziata, proximidades de Nápoles e de Salerno, criou uma máquina de enxugamento artificial. Fulminantemente proliferaram os fabricantes e os tipos de macarrão. Logo depois, em 1933, dois manos, Giuseppe e Mario Braibanti, instalaram em Parma, na Emília-Romanha, no rumo do norte da Bota, uma linha de produção completa, em série, da mistura da massa à embalagem e ao empacotamento. Melhor, os Braibanti também impuseram, ao seu equipamento, bicos com portas de saída intercambiáveis. Numa só linha era possível fabricar dezenas de cortes e de tamanhos. Habitualmente, a desidratação deixa as massas secas com cerca de 13% da quantidade original de líquido na sua formulação. Cozinhar o macarrão, na verdade, significa devolver à sua estrutura os 87% que perdeu. Por isso é obrigatório que o ato de cozinhar ocorra em água abundante e fervente.
Curiosamente, as massas recheadas são muito mais antigas do que o procedimento de desidratação. Além de poeta estupendo, Dante Alighieri (1265-1321) adorava redigir crônicas buliçosas sobre os seus amigos e os seus contemporâneos. Um deles, Niccolò de Salimbeni, morador de Siena, era um gourmet bizarro. Em 1285 se uniu a onze companheiros para a fundação da Brigada dos Esbanjadores – que se dispunha a gastar fortunas com inutilidades. Entre outras peraltices, a brigada contratou um cozinheiro destinado a lhe desenvolver receitas monumentais, sempre para doze pessoas. Ficou documentado, por escrito, que uma das alquimias levava explicitamente ravioli, preenchidos com ovos, ervas, especiarias, queijo de leite de ovelha e ricota. A carne entraria em cena no século 14.
UM FRUTO MEXICANO
No departamento dos molhos, a evolução foi mais lenta. A receita mais veneranda de que se tem notícia foi a assassunata, azeite, sal, ervas, como o orégano, e especiarias. A expressão é uma corruptela do francês assaisoner, ou condimentar, temperar, um costume introduzido na Sicília pelo rei Rogério 1º, normando, pai de Rogério 2º. Ainda, naqueles idos das trujje, cobriam-se os santos fios com queijo de leite de cabra, raladinho, pimenta-do-reino e, no topo, um ovo frito, que se talhava a ponta de faca para que a sua gema sensualmente penetrasse no conjunto. Em seguida, na passagem do século 13 ao século 14, parceiro do azeite, os cucas de plantão recorreram ao alho. Despontaram, daí, o atum, as anchovas, as sardinhas e as suas ovas, desidratadas e raladas – a delícia chamada de botarga. Utilizavam-se, ainda, as verduras e os legumes. E o mel, o macarrão doce na sobremesa. No século 15 a Itália inteirinha desfrutava o macarrão.
A efetiva e sublime revolução na história do macarrão, de todo modo, aconteceria no século 16, quando os navegadores espanhóis capturaram, na costa do Pacífico, um fruto rubro, sumarentíssimo, que os astecas apelidavam de tomatl. Tal fruto desembarcou na Europa com o prestígio devido às maravilhas místicas. Quase uma praga, facílimo de plantar, de crescimento rápido e desmesurado, pelo seu visual depressa encantou a corte da Espanha. Só que os nobres preservavam o fruto rubro como enfeite e decoração, e consumiam, como alimento, as suas folhas e os seus talos.
Consequência: num banquete em que a corte abusou dos verdes indigestos, centenas de aristocratas se intoxicaram – e um édito real baniu o tomate.
Décadas depois, marinheiros napolitanos, em visita à Ibéria, se interessaram pelo tomate e, de volta à Bota, carregaram consigo, através do Mediterrâneo, uma quantidade generosa de sementes. Que plantaram nas encostas da sua cidade. Graças ao sol da Campânia e ao solo sulfuroso da região, o tomate se transformou no espetáculo que atualmente propõe ao planeta. Enriqueceu a pizza e o macarrão. Hoje, mais do que ingrediente, é um ícone da gastronomia universal.
O companheiro inefável do macarrão.