O gênio inventou a panela de pressão e o guardanapo. E, ao contrário do que dizem, não era vegetariano.
Por J. A. Dias Lopes
Os vegetarianos perderam um ídolo. Leonardo da Vinci (1452-1519) comia carne, sim. Por séculos eles acreditaram que não. O gênio da arte e da ciência nascido na Toscana não era vegetariano. A crença de que se abstinha de carne vinha da leitura equivocada de uma carta do astrônomo e erudito florentino Andrea Corsali, datada de 1516.
Encontrando-se em Cochim, a maior cidade do estado de Kerala, na Índia, ele relatou os hábitos alimentares do povo da região e se referiu indiretamente a Leonardo. A carta foi endereçada a Giuliano II de Médici, irmão do papa Leão X. “Não comem coisa alguma que tenha sangue (…), como o nosso Leonardo da Vinci: vivem de arroz, leite e outros alimentos inanimados”, escreveu Corsali.
Segundo o recentíssimo livro Leonardo Non Era Vegetariano (Maschietto Editore, Florença, 2015), de Alessandro Vezzosi e Agnese Sabato – com prefácio de Oscar Farinetti, criador do megacomplexo gastronômico Eataly, que tem filial em São Paulo –, a comparação não expressava a verdade. O gênio se alimentava de tudo, exceto talvez nos últimos anos de vida, quando sofreu um acidente vascular que paralisou sua mão direita. Mesmo assim, a partir da carta de Andrea Corsali, inúmeros autores acreditaram no vegetarianismo de Leonardo e ajudaram a convertê-lo em um ícone mundial da abstinência de carne. Mesmo não sendo.
Em 25 listas de despesa do ateliê do gênio, analisadas pelos autores do livro, a carne aparece 17 vezes e o peixe, três. Até frango Leonardo comprava. Os vegetarianos reagem dizendo que os ingredientes “provavelmente se destinavam aos seus alunos”. Mas os autores de Leonardo Non Era Vegetariano mostram que a interpretação não se sustenta e derrubam outro mito em torno do gênio: ele também não era homossexual “e conhecia o relacionamento sexual com a mulher”.
Um dos autores, o crítico Vezzosi, diretor do Museo Ideale Leonardo da Vinci, em Vinci, cidade a 40 quilômetros de Florença, admite que o ilustre personagem contribuiu para reforçar a tese vegetariana. Em diferentes momentos da vida, ele criticou os que tratavam mal os animais. Ao cruzar nas ruas com vendedores de pássaros, Leonardo comprava as aves e as retirava das gaiolas, devolvendo-as à liberdade. Também condenava as pessoas que matavam cruelmente os bichos. Em um dos seus livros de notas escreveu: “Os homens e as feras não são mais do que eternos cemitérios ambulantes, túmulos uns para os outros”.
Entre os anos de 1495 e 1498, Leonardo trabalhou no afresco A Última Ceia (em italiano L’Ultima Cena e também Il Cenacolo), a mais famosa representação da derradeira refeição de Jesus com os apóstolos. Pintou-o em uma das paredes do refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão. Foi encomenda de seu protetor Ludovico Sforza, o Mouro, duque de Milão. Era tempo de Páscoa. Jesus e os apóstolos comemoravam a festa judaica que homenageia a libertação dos filhos de Israel após mais de dois séculos de escravidão no Egito.
Um outro Judas
A Última Ceia teria ocorrido no Seder, que vem a ser a primeira noite da Páscoa hebraica. Segundo o Evangelho de São Lucas, capítulo 22, versículos 7 a 20, São Pedro e São João receberam instruções para prepará-la. Sobre a mesa existiam alimentos da liturgia judaica: ervas amargas para relembrar o sofrimento causado pela escravidão ao povo hebreu; pão ázimo, em memória da fuga do Egito, pois não havia tempo para a massa levedar; e carne de cordeiro.
Leonardo dispunha dessas informações, mas as desprezou. Não fez isso por convicções dietéticas, mas pelo mesmo talento criativo com que adaptou a fisionomia dos apóstolos. O Judas de A Última Ceia, por exemplo, retrataria Girolamo Savonarola (1452-1498), o pregador dominicano que impôs aos habitantes de Florença uma vida quase monacal e que acabou excomungado pelo papa Alexandre VI e foi queimado vivo por heresia. No afresco pintado pelo artista há comida renascentista: enrolados de pão, purê de nabos e rabanadas de enguia, além de sete copos vazios, que podem ter contido vinho.
O autor de A Última Ceia nunca foi gourmet. Entretanto, no divertido livro Leonardo’s Kitchen Note Book ou Codex Romanoff (William Collins & Sons, Londres 1987), cuja autoria lhe é atribuída sem comprovação documental, a ponto de muitos considerarem um texto falso, ele aparece como grande cozinheiro, dono de uma taberna em sociedade com o colega de pincel Sandro Botticelli; além de produtor de vinho. São informações curiosas.
Certo é apenas que, na corte de Ludovico Sforza, onde foi por 17 anos conselheiro de fortificações e mestre de cerimônias e banquetes, Leonardo conviveu com uma mesa opulenta e carnívora. Na cozinha do duque de Milão ou de sua família pode ter nascido a cotoletta alla milanese, obra-prima da culinária italiana, em que a carne de vitelo, temperada com sal e pimenta, é passada no ovo batido, depois em pão ralado grosseiramente, e colocada por último para fritar na manteiga.
Os felizes troca-coelhos
Antes, durante e depois da função de mestre de cerimônias e banquetes, o gênio estudou e escreveu sobre os ingredientes; investigou a propriedade dos alimentos e sua relação com a saúde humana; representou-os em algumas de suas pinturas, inclusive em A Última Ceia; inventou máquinas e utensílios para prepará-los, como uma primitiva panela de pressão; discorreu sobre as características dos territórios onde são produzidos; codificou produtos como o pão, o vinho e o azeite.
O Codex Romanoff – intitulado assim porque teria permanecido durante muito tempo em poder da família imperial russa – conta que Leonardo criou diversos utensílios de cozinha. Alguns se revelaram viáveis, como a referida panela de pressão e um forno no qual o ar quente ascendente movimentava pás que giravam um espeto. Outros são bizarros, como a fatiadora de pão movida a vento e o cortador gigante de agrião, que o duque de Milão teria convertido em arma de guerra na batalha contra os invasores franceses.
Segundo o mesmo livro, cujos originais nunca apareceram e do qual existe apenas cópia feita por um certo Pasquale Pisapia, para o casamento do duque de Milão com Beatriz d’Este, em 1491, Leonardo projetou e comandou o preparo de um bolo gigante. Reproduzia fielmente o palácio do noivo. Os convidados atravessariam suas portas e sentariam em bancos e mesas comestíveis. Entretanto, um dia antes da comemoração, os ratos atacaram o bolo. Os ajudantes de Leonardo passaram a noite em batalha campal.
O Codex Romanoff ainda se refere à preocupação do gênio com o comportamento às refeições (veja quadro) e oferece soluções para problemas inesperados. “As manchas de sangue nas toalhas (que podem ser provenientes de um acidente com a faca de cortar ou algum assassinato) já não representam problema algum, nem se deve tirá-las para limpá-las”, orienta o livro. “Deve-se esfregar com força a área manchada com água de nabos morna.”
Na época, comia-se com as mãos. Em alguns banquetes elegantes, coelhos vivos eram amarrados nos bancos para as pessoas limparem as mãos no pelo desses animais. O cargo de troca-coelhos era disputadíssimo, porque o serviçal ouvia as conversas da nobreza e se tornava pessoa bem informada. Na falta de coelhos, limpavam-se as mãos na toalha da mesa ou na roupa do vizinho. Leonardo substituiu os animais e introduziu o até então desconhecido guardanapo. Mas a invenção demorou a ser aceita. Ninguém sabia o que fazer com aquele pedaço de pano.
Pietro Alemani, que o Codex Romanoff apresenta como embaixador de Florença em Milão, relata o problema: “Alguns se sentaram sobre o pano, outros limparam o nariz com ele (…). Outros usaram para embrulhar pedaços de carne e guardar nos bolsos”. Para o Codex Romanoff, o autor de A Última Ceia apreciava tanto a mesa onívora e generosa que legou metade dos seus bens a Battista de Villanis, seu cozinheiro particular. Se non è vero, è bene trovato.