No centenário de nascimento daquela que preferia ser chamada de memorialista a escritora, deliciosas recordações da intimidade com a anarquista que acreditava em Deus
Por Roberto Amado
Sempre que penso nela, vejo duas imagens. Na primeira, ela está contando algum caso engraçado, modulando a voz, desfrutando cada palavra. Na segunda, aparece tranquila, de mãos dadas com tio Jorge. Tanto em uma imagem como na outra, seu belo rosto redondo transborda uma enorme satisfação de viver.
Essa é tia Zélia. Poderia ter sido uma tia qualquer. Aliás, era o que ela pretendia. Mas havia algo que a fazia sobressair – sempre. Carismática, marcava sua presença em qualquer ambiente e brilhava com suas histórias, sua doce risada e sua personalidade intensa.
Muito se falará sobre tia Zélia neste ano. É o centenário de seu nascimento. Ela morreu em 2008, aos 91 anos, em Salvador. Seis anos antes, fora eleita pela Academia Brasileira de Letras para ocupar justamente a cadeira do marido. Cá do meu lado, penso nela como símbolo da mulher feliz, emancipada e criativa.
A vocação de contadora de histórias levou-a, ainda que tardiamente, a escrever livros. Publicou o primeiro aos 63 anos. A partir daí foram outros 16, um fenômeno. Lançou o último deles, Vacina de Sapo e Outras Lembranças, aos 89, em 2006, dois anos antes de morrer. Foi também fotógrafa e artista plástica, além de companheira incondicional de seu amado, o Jorge, com quem conviveu ao longo de 56 anos. Com ele, compartilhou uma vida atribulada: viajou o mundo inteiro e sofreu as agruras dos confrontos políticos e do exílio.
A convivência com Jorge Amado talvez tenha dado a tia Zélia um jeito baiano. “Não fale assim, Jorge!”, dizia ela com entonação cantada, repreendendo alguma brincadeira safada de tio Jorge, irmão de meu pai, Joelson. Nesses momentos, caprichava na célebre malemolência baiana. Mas tia Zélia era paulistana típica. Com sotaque e tudo.
Ela nasceu em 2 de julho de 1916 e foi criada na alameda Santos, a uma quadra da avenida Paulista, como conta em seu livro de estreia, Anarquistas, Graças a Deus. Era, sobretudo, Gattai – uma das famílias italianas que emigraram para o Brasil no século 19 com o sonho de construir um modelo de sociedade anarquista. Pouco mais de 50 pessoas se instalaram no norte do Paraná e fundaram a Colônia Cecília, onde não havia líderes, vivia-se em comunidade e o amor era livre.
Isso foi em 1890. Minha tia conheceu esses fatos apenas pelos relatos dos pais, Ernesto e Angelina Gattai, modestos e com pouca instrução, mas admiradores da arte e dos movimentos operários. A menina caçula de cinco irmãos cresceu vivendo o sonho igualitário do começo do século 20 e, ainda muito jovem, casou-se com um intelectual, Aldo Veiga, tesoureiro do Partido Comunista. Foi ele quem abriu as portas para que a mulher convivesse com artistas e intelectuais como o escritor Mário de Andrade, o cronista Rubem Braga e os pintores Lasar Segall e Tarsila do Amaral. Sobre essa época, no entanto, ela pouco falava.
A vida de tia Zélia mudou quando ela se aproximou de tio Jorge. Na época, 1945, ele estava em São Paulo, escrevendo e participando de atividades políticas naquele sopro de liberdade do pós-guerra. O antropólogo Darcy Ribeiro relembrou o período em que ambos conheceram Zélia: “Ela era livreira de uma pequena livraria na avenida São João e tinha os mais belos braços de São Paulo. Postos nus para pegar os livros numa estante alta, nos maravilhavam. Sobretudo a Jorge, que acabou fugindo com ela, para andarem juntos mundo afora, vida adentro”.
Três meses depois, a livreira e o escritor moravam juntos, quebrando convenções e desafiando as regras sociais vigentes. Ela deixou o marido e o filho, Luís Carlos, que tinha apenas 3 anos. E, quando tio Jorge foi eleito deputado federal pelo Partido Comunista, não hesitou em ir com ele para o Rio de Janeiro, onde “compraram um sítio e passaram a criar galinhas”.
Não exatamente. Tio Jorge escrevia e tinha obrigações no Congresso Nacional. Mas era assim que contava minha avó Lalu, mãe dos “meninos” Jorge, Joelson e James, os irmãos Amado. De ascendência indígena, Lalu era inteligente, sarcástica, muito imaginativa, e detestava o assédio feminino a seus filhos queridos. Ciumenta, não gostou da nova presença na família e tinha duas versões do primeiro encontro entre Jorge e Zélia – escolhia uma delas conforme o humor. Na primeira, dizia que foi amor à primeira vista, uma paixão divina. Na outra versão, ela recorria aos impulsos mais safados de tio Jorge. A futura nora de vó Lalu era muito jovem, muito bonita e muito interessante. Claro que o recém-desquitado Jorge haveria de lançar suas mais sedutoras estratégias em direção à beldade, sem qualquer outra intenção mais séria. Parece que foi traído pela intenção.
Disposta a ser feliz
Com o início da Guerra Fria, a União Soviética passou a ser “inimiga”, assim como seus admiradores. Em maio de 1947, o registro do Partido Comunista Brasileiro foi cassado e tio Jorge se viu obrigado a se exilar. Tia Zélia ficou. Tinha acabado de dar à luz o primeiro filho com tio Jorge, meu primo João Jorge, e não era aconselhável viajar com o bebê naquelas condições – o que só aconteceria alguns meses depois.
Tia Zélia, com criança de colo, encontrou uma Europa destruída pela guerra. Faltavam energia, água, carvão e comida. Sabonetes eram raros, uma preciosidade. Como se não bastasse, tio Jorge não parava. Viajava pelos quatro cantos da Europa, exercendo sua militância. Em 1948, esteve no Congresso de Intelectuais pela Paz, na cidade semidestruída de Vratislávia, na Polônia. Muitas vezes tia Zélia ficou sozinha, em lugares estranhos onde não havia fraldas nem alimentação adequada para o bebê.
O vaivém sossegou quando o casal se mudou para Paris, onde tio Jorge ocupou um cargo no Comitê pela Paz. Ali os dois passaram quase dois anos. A moradia era o Saint-Michel, um modesto hotel no Quartier Latin, com banheiro compartilhado e calefação precária. Mas foi naquela Paris que a moça criada em São Paulo pôde ter um pouco de estabilidade e se desenvolver intelectualmente. Aprendeu francês, se aprofundou no estudo da arte e conviveu com gente como os dois Pablos – Picasso e Neruda. Tudo isso enquanto cuidava do filho ou datilografava os originais do marido.
O casal não parava quieto. Foram os primeiros brasileiros a visitar a União Soviética depois do começo da Guerra Fria, quando tio Jorge ganhou o prêmio Stálin, a versão socialista do Nobel. Eram tempos agitados, plenos de sonhos e certezas de criar um mundo de paz e igualdade social. Tempos duros também, de pouco conforto e nenhum luxo.
Enquanto a dupla curtia o amor romântico, formando nova família, no Brasil os filhos do primeiro casamento de cada um foram abandonados. Lila, nascida da união de tio Jorge com Matilde, morreu repentinamente aos 15 anos de lúpus, uma doença autoimune. Ao mesmo tempo, o filho de Aldo Veiga com tia Zélia se afastava dela. Luís Carlos, assim registrado em homenagem ao líder comunista Luís Carlos Prestes – aliás, personagem-título do livro O Cavaleiro da Esperança, de Jorge Amado –, só reataria relações com a mãe décadas depois. Quando os dois já eram idosos. Tia Zélia contava: “Tomei a decisão de enfrentar todas as dificuldades, de ter pouco dinheiro, de não chorar de saudades. Eu amava Jorge e nada seria sacrifício. Estava disposta a ser feliz”.
Motivo para gargalhadas
Era tempo de amor, literatura e tarefas políticas. E algumas surpresas: sem muitas explicações, o casal foi expulso da França e passou a morar em Praga, na antiga Tchecoslováquia, onde encontrou abrigo no Castelo dos Escritores, um refúgio dos perseguidos e excluídos. Lá, tia Zélia teve uma menina: Paloma. Os motivos para voltar ao Brasil começaram a se acumular. Houve uma negociação com o governo para que tio Jorge não fosse preso na volta. Depois de cinco anos de exílio, os dois vieram morar no Rio.
Foi naquela época, segunda metade da década de 1950, que os crimes de Stálin se tornaram públicos, o PCB se enfraqueceu e o casal rompeu relações com o “Partidão”. Era o momento de se dedicar a tarefas pessoais e abandonar de vez o sectarismo. Tia Zélia explicava: “O socialismo que eu aprendera a respeitar, desde criança com meu pai, era outro, muito outro, completamente diferente… Meu pai me ensinara que sem liberdade o homem não pode viver. Não há dúvida, os princípios do socialismo significavam um avanço da sociedade. Os homens que os aplicavam é que, muitas vezes, não estavam à altura”.
Já no início dos anos 1960, ela não titubeou em apoiar a decisão do marido de trocar de endereço. Foram para Salvador, para a célebre casa do Rio Vermelho, onde viveram por mais de 40 anos. Ali, ela descobriu a fotografia. De início, as fotos eram despretensiosas. Mas logo a vocação artística se pronunciou e a atividade virou paixão, a ponto de tia Zélia montar um laboratório fotográfico doméstico para revelar e ampliar seus retratos em branco e preto. Naquele período, a imagem dela estava sempre associada a uma câmera fotográfica a tiracolo, com a qual montou um belíssimo acervo, registrando, sobretudo, a vida de Jorge Amado.
A partir da década de 1960 passei a acompanhar de perto a rotina deles, quando ia a Salvador passar férias escolares. Raramente brigavam. Mas tio Jorge gostava de aprontar traquinagens com ela, só pelo prazer de se divertir com sua indignação. Certa vez, me prometeu um dinheirinho caso eu repetisse para ela a frase: “Velha decrépita, centenária!” Foi o que fiz, várias vezes. “Saia já daqui, menino!”, ela ralhava, sabendo de antemão quem estava por trás da cena. Tio Jorge se deliciava com a presepada. Eu, claro, ignorava o sentido daquelas palavras. Mas fiquei feliz com a gorjeta que ganhei.
Tio Jorge tinha medo de avião e nunca guiou um automóvel. Apesar de ter um motorista, preferia ir como passageiro no velho Peugeot com o qual minha tia circulava por Salvador. E, mesmo incapaz de dirigir, fazia questão de atuar como copiloto, dando palpites inúteis que a deixavam furiosa. Mesmo assim, ela jamais perdia o bom humor. À fúria momentânea logo se sucedia um sem-fim de gargalhadas.
Emancipação feminina
Jamais vou me esquecer do jeito com que ela tratava tio Jorge. Com uma delicadeza e uma dedicação impressionantes. Tia Zélia não era a chamada “dona de casa exemplar”, que cozinhava, lavava, fazia compras. Longe disso. Mas era a personificação da companheira perfeita. Vivia sempre ao lado dele, apoiando-o, sem no entanto jamais deixar de fazer o que queria.
Em 1987 ela publicou o livro Reportagem Incompleta, uma fotobiografia dos dois. Mas seu talento inquieto pedia mais, muito mais. Já sexagenária, incentivada por tio Jorge e pelos amigos, resolveu passar para o papel sua experiência de vida. Tia Zélia, aliás, jamais se considerou uma escritora. “Sou uma memorialista”, dizia.
Ainda assim, fez sua estreia com uma obra que, mais do que um saboroso documento, revelou-se um clássico. Anarquistas, Graças a Deus reproduz sua infância com uma riqueza impressionante de detalhes sobre o viver paulistano no começo do século 20. O título não deixa dúvida quanto à ideologia e às crenças da família Gattai – anarquistas que, lá no fundinho, acreditavam em Deus, uma contradição inexplicável, mas plenamente aceitável.
O livro tornou-se best-seller, foi vertido para o espanhol, o italiano e o francês e, mais tarde, virou minissérie da Rede Globo. Tio Jorge se orgulhava do sucesso da mulher – ainda que muitas vezes não a deixasse em paz. Mais velho que ela, acordava todo dia de madrugada. Dizia que depois das 10 da manhã “ficava burro”. E não deixava por menos: criava uma confusão dos diabos. Falava alto, dava ordens aos empregados, metia a colher em detalhes domésticos que não eram da sua conta.
Meio a contragosto, tia Zélia acabava se levantando e tratava de apaziguar a ansiedade do homem. Essa rotina só mudava quando tio Jorge estava escrevendo um novo romance – e então o casal encontrava um retiro para se afastar do assédio diário. Ela fazendo as vontades do marido. Ele batucando a máquina de escrever. Datilografava apenas com dois dedos, os indicadores. Tia Zélia, que batia a máquina com os dez dedos, queria porque queria ensiná-lo a fazer o mesmo – mas qual! Com o tempo, percebeu que se tratava de barro sem a menor esperança de escultura.
Melhor tratar de sua própria produção literária. Suas obras seguintes depuram o estilo muito pessoal de escrever, sem ornamentos e pleno de emoção. Mais segura do domínio do ofício, lançou-se na ficção. Publicou três livros para crianças e também um para adultos, Crônica de uma Namorada. A rigor, um romance de formação, narrando alegrias, descobertas e agruras de uma adolescente, Giane. Como profissional da literatura, tia Zélia se completou com reflexões sobre a emancipação feminina.
Universo sensual
Para Walnice Nogueira Galvão, professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, Zélia Gattai baseou sua obra “em uma vida muito rica e interessantíssima”. Walnice destaca a importância histórica das memórias do movimento operário impulsionado pelos italianos em São Paulo. Mas acredita que o valor literário de Zélia vá além do mero aspecto documental. “Sua linguagem coloquial tem um sabor muito próprio.”
O romancista gaúcho Moacyr Scliar, morto há 4 anos, era apenas um menino quando viu tia Zélia pela primeira vez, em visita a seus pais no Rio Grande do Sul. Mais tarde, Scliar seria lembrado por ela no livro Um Chapéu para Viagem, lançado em 1982, como “um garoto loirinho de Porto Alegre”. Scliar testemunhou: “Zélia foi uma ótima narradora, cosmopolita e uma testemunha importante de fatos importantes da história brasileira”. Disse mais: “A literatura de Zélia deixa transparecer aquela que na minha opinião é sua maior característica: a generosidade”.
Alguns momentos com tia Zélia me marcaram. Em especial, uma conversa em 2001. Tio Jorge havia morrido fazia pouco tempo e escrevi uma carta para ela tentando explicar como ele havia sido importante para mim. Naquela ocasião, ela nos visitava em São Paulo. Ainda estávamos tristes com a morte de tio Jorge e me lembro que a encontrei na entrada do prédio, ambos chegando juntos. Ela olhou para mim e disse: “Ai, que carta linda!” E me abraçou. Ficamos assim por uns três minutos, em silêncio, os dois soluçando levemente.
Eu não disse mais nada. O assunto para mim se encerrara naquela carta. Agora só restavam os gestos. Percebi que havia lágrimas nos olhos de tia Zélia, mas ela sorria. “Tanta coisa bonita que você sentiu pelo seu tio”, disse, passando a mão no meu rosto. Entramos no elevador em silêncio, pensativos. “Ele sempre falou muito de você”, retomou. De repente, rompendo o ciclo de tristeza, encarnou o marido. Perguntou à queima-roupa: “Você ainda está de cacho com aquela loirinha safada?” E rimos os dois, de volta ao sensual universo dos Amado.