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Há 45 anos era publicada a entrevista de John Lennon à Rolling Stone em que ele
detona meio mundo e brada: “o sonho acabou”

Por Walterson Sardenberg Sº

Sobrou para todo mundo. Em janeiro de 1971, quando a edição 74 da Rolling Stone chegou às bancas, a orelha de muita gente boa esquentou. Ou melhor, ferveu. Em entrevista a Jann Wenner, um dos fundadores da publicação, um John Lennon furibundo falava barbaridades de todos os seres animados que algum dia ousaram lhe cruzar o caminho. Poupada das imprecações, Yoko Ono, sua amada cara-metade – e a maior parte da outra metade também –, ajudava a aumentar a temperatura.

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Para horror dos amigos do ex-beatle, a entrevista teve uma sequência no número seguinte da Rolling Stone, naqueles tempos ainda um tabloide da imprensa alternativa. A longa conversa com Wenner passaria para a história em virtude desta declaração: “O sonho acabou. E não estou falando apenas que os Beatles chegaram ao fim, falo de toda uma geração. O sonho acabou, e tive de encarar pessoalmente a chamada realidade”.

À primeira vista, uma realista constatação do fim do ingênuo ideário hippie. No entanto, bem mais do que isso, a entrevista – sai da frente! – foi mesmo uma indiscriminada distribuição de patadas. Até Yoko admitiu que John pegara pesado. Em 2000, duas décadas após a morte do marido, ela escreveu: “Naquela entrevista, John está tentando revidar e não se sai bem. Não é sutil ou sensato e, como exceção à regra, nem mesmo particularmente esperto”.

No início de dezembro de 1970, acomodado no escritório nova-iorquino de Allen Klein – o empresário espertalhão a quem tentava passar o legado administrativo dos Beatles –, Lennon, o iconoclasta, estava mesmo como o tinhoso aprecia. Escaldado, Klein instruiu funcionários a fornecer laxantes e analgésicos ao cliente roqueiro. Eram paliativos contra os efeitos colaterais da heroína, droga em que Lennon recaíra no primeiro semestre do ano. A ansiedade maníaca da fala do ex-beatle, seja como for, é típica dos consumidores de cocaína. Dá para ouvir no YouTube. A julgar pela verborragia, ele aspirara em quantidades, diria o vulgo, de bater com enxada e cheirar com manilha.

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John atribuía sua imersão nas drogas pesadas à reação pouco amistosa ao seu relacionamento com Yoko, junto de quem circulava, havia dois anos, com a constância de irmãos siameses. “Estavam infernizando a nossa vida”, explicou. Justificável ou não, a mágoa virou rancor e, enfim, artilharia pesada. Ao longo da entrevista, Lennon chamou Mick Jagger de “uma piada” e sua dança de “idiotice”. Os Rolling Stones, ao seu ver, não iam muito além de imitadores: “O que a gente criava, eles faziam dois meses depois”. Também o mais recente LP de Bob Dylan, New Morning, não era “grande coisa”. Andy Warhol? “Não curto o meio de drogas e veadagem em que ele vive”. Mas o pior ficara reservado aos colegas de fortuna – e agora de infortúnio.

Segundo o pouco natalino Lennon daquele mês de dezembro, o cavalheiresco produtor George Martin não produziu “para valer” muitos dos discos dos Beatles. O lado B do LP Abbey Road, por exemplo, seria “um lixo”. Quanto aos demais colaboradores próximos da banda, “depois de trabalharem dez, quinze anos com gênios”, começaram a achar que também haviam vindo ao mundo com neurônios privilegiados. Ora essa, quer dizer que os quatro rapazes de Liverpool tinham sido geniais?

Nem tanto. Em vez de beatle, John disse preferir o ofício de pescador, embora as excursões do conjunto, como se dizia à época, tenham proporcionado alguma diversão. Pela excentricidade e quantidade de orgias, “pareciam o Satyricon de Fellini”. Mas, pensando bem, nem era tão divertido assim. “Para ser o que os Beatles foram é preciso se humilhar completamente”, cravou. E que tal, caro John, o disco de estreia solo de Paul McCartney, seu amigo, confidente e parceiro desde os 16 anos? Numa palavra: “tolo”. E o de George Harrison, um álbum triplo? Em outra: “razoável” – “Não é o tipo de música que eu ouviria em casa”.

Um vocábulo único podia resumir o John Lennon dos idos em que acordara do sonho: compulsivo. Mesmo advertido por Mick Jagger de que Allen Klein era um velhaco, atirou-se nos braços do empresário como uma mocinha de folhetim. Ainda que lhe apontassem a desafinação de Yoko Ono como um incontornável empecilho musical, resolveu ignorá-la – a desafinação. Até mesmo diante das evidências de que o grego Alexis Mardas não passava de um picareta, preferiu dar de ombros.

Mardas chegou a Londres com um único diploma, o de técnico em eletrônica. Isso o credenciava, no máximo, a consertar televisores. Mas ele era cara de pau e bem-humorado. Ao aproximar-se de Lennon, mostrou-lhe uma diminuta caixa de metal de sua lavra, a Nothing Box, que alternava de modo aleatório luzinhas coloridas. A invenção fazia jus ao nome: não servia para nada. Estranhamente, John maravilhou-se. Ainda mais quando Mardas, a quem apelidou Magic Alex, contou-lhe seus planos mais ambiciosos: pôr em prática uma mesa de som de 72 canais, um papel de paredes que funcionaria como alto-falante, uma tinta que tornaria os objetos invisíveis e – por que não? – um disco voador. Lennon entusiasmou-se a ponto de soerguer o novo amigo a presidente da Apple Eletronics, subsidiária da Apple (sim, Steve Jobs inspirou-se nesse nome), a empresa aberta pelos Beatles por recomendação dos advogados para diminuir encargos fiscais.

Um presente de grego

Ao tomar posse do emprego, o oráculo grego de John partiu para arquitetar a tal mesa de som. O trambolho jamais funcionou, assim como suas demais engenhocas. Geoff Emerick, brilhante engenheiro de som dos Beatles, relata em seu livro de memórias ter vendido a geringonça para um brechó por 5 libras: “Foi o dobro do que realmente valia”. Quanto ao disco voador, não chegou a ser feito. Sua construção teria transformado em sucata dois automóveis-símbolo da indústria europeia. É o que confessou George Harrison: “Eu ia dar a Alex o motor V-12 da minha Ferrari Berlinetta; e John o de seu Rolls-Royce. Alex disse que com esses dois motores faria um disco voador”.

Se as invenções se revelaram um fracasso, ainda assim John titubeou antes de despedir o amigo grego. Afinal, ele foi-lhe útil como detetive. Explique-se: já unido à Yoko, um solerte John incumbiu Alex de vasculhar flagrantes de traição amorosa de sua ex-mulher, Cynthia Lennon, com quem ainda estava casado no papel, a fim de facilitar o divórcio. Desta feita, o grego se deu bem. Primeiro, dormiu com Cynthia – que andava bem ressentida. Depois, enviado para segui-la de perto em uma viagem a Pesaro, na Itália, descobriu o relacionamento íntimo dela com o hoteleiro Roberto Bessanini. Cynthia negou o quanto pôde. Mas acabou se casando com o italiano. Embora uma fraude como inventor, o grego tinha faro fino.

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Alguém que acreditasse em tinta para tornar objetos invisíveis também podia botar fé em um psicoterapeuta de métodos mais heterodoxos que um óvni com motores de automóvel. Foi assim que Lennon se envolveu com o homem que mudaria sua vida no ano de 1970 e seria o responsável direto não só pela sem-cerimônia da entrevista à Rolling Stone, como também pela superexposição emocional de seu primeiro – e maravilhoso – disco solo.

Em janeiro de 1970, o americano Arthur Janov, Ph.D em psicologia pela Universidade da Califórnia, enviou a Lennon pelo correio o livro em que sintetizava a sua metodologia: The Primal Scream (O Grito Primal). Em geral, o ex-beatle considerava estudos acadêmicos mera “conversa mole”. Janov, porém, fundamentava a prática no tratamento objetivo dos traumas de infância. Isso calou em John. Janov propunha ao paciente retornar às dores da meninice e expurgá-las por gritos, choro e até murros em sacos de boxe. John e Yoko se encantaram e resolveram se submeter ao tratamento. Em março, Janov desembarcou na Inglaterra. Foi acolhido na mansão do casal em Ascot, mas decidiu ter sessões de terapia com John e Yoko em separado.

Isso significou uma logística esdrúxula. Proibidos de manter contato, John e Yoko se hospedavam em andares diferentes de hotéis de luxo londrinos, enquanto Janov corria de um quarto para o outro como um coelho de desenho animado. Em uma das suítes, ouvia os lancinantes uivos da menina que sofrera, aos 13 anos, com os bombardeios americanos sobre Tóquio. Na outra, escutava os berros do garoto abandonado pelo pai, o marujo Alfred, ainda bebê. Mais traumas: John foi criado pela tia Mimi, irmã de sua mãe, Julia, atropelada e morta quando o filho tinha 17 anos.

Depois das sessões londrinas, o casal viajou para Los Angeles, para prosseguir o tratamento, enfim interrompido antes do prazo estipulado por Janov. Eis o motivo principal da suspensão: Lennon teria desconfiado de que o terapeuta gravava cada conversa. Janov lamentou: “Conseguimos que ele ficasse totalmente aberto, mas não tive tempo de reajustá-lo a uma normalidade”.

Foi esse John frágil como um táxi de papel que se enfureceu ao ler as declarações de McCartney revelando à imprensa o fim dos Beatles, a pretexto de divulgar o próprio álbum solo. A seu ver, uma traição. Desgovernado pela cisão emocional aberta e não suturada, Lennon engordou 15 quilos. “Parte da terapia era não ter qualquer tipo de autocontrole”, explicaria depois. Foi também esse John rechonchudo, sensível e emotivo ao extremo que entraria no estúdio para gravar Plastic Ono Band, um álbum até hoje sem paralelos, com suas letras confessionais, cruas, edipianas e despojadas de metáforas. Uma honestidade brutal. “Foi o primeiro álbum punk”, disse James Woodall, especialista em biografas (escreveu uma de Jorge Luis Borges) e autor do livro John Lennon and Yoko Ono (1997).

Nem Elvis nem Jesus

Para acompanhá-lo, John chamou dois chegados de velha data, a quem sabia poder expor sua alma nua. Na bateria, o boa-praça Ringo Starr. No baixo, Klaus Voorman, o alemão que conhecera em Hamburgo quando os Beatles eram quase anônimos. Só com amigos íntimos, enfim, poderia se despir de qualquer pudor. De qualquer maneira, foi um choque. “De repente, estávamos no meio de uma faixa e John simplesmente começava a chorar ou gritar – o que nos apavorou no início”, revelou Voorman. “Ele chorava na sala de controle, ouvindo as músicas, conversando com Yoko, lembrando coisas das letras. Era visível o quanto estava comovido”, relatou o baixista e desenhista, autor da capa do álbum Revolver, dos Beatles. Em meio às sessões, John Winston Lennon completou 30 anos.

Na capa do disco, ele aparece tranquilo, refestelado no colo de Yoko à sombra de uma azinheira, em foto tirada pelo ator Dan Richter – o macaco da sequência inicial do filme 2001, de Stanley Kubrick. O invólucro não condiz com o conteúdo. “Working Class Hero” é uma canção de protesto ao estilo de Dylan, só que muito mais contundente. Em “God”, Lennon vocifera contra todos em quem não acredita mais, de Jesus a Krishna; de Elvis aos Beatles. A letra inclui o verso “o sonho acabou”. “Isolation” desafoga as dores de John e Yoko por serem acusados pelo fim do casamento com Cynthia e da própria banda. “Mummy’s Dead” é autoexplicativa. “Hold On” recorda as emoções em farrapos de Lennon quando os parentes tentaram consolá-lo pela morte da mãe. “Mother”, único sucesso de execução do álbum, é a essência do grito primal. Lennon, aos pedaços, berra para que a mãe não vá embora e se esgoela para o pai voltar para casa.

Ainda naquele ano de 1970, Alfred Lennon parece ter ouvido os insistentes chamados do filho. Ambos não se viam havia três anos. Chegaram a aproximar-se no passado, quando John teria aceitado as explicações do pai pelo rompimento com a família – que, jurava Alfred de joelhos, partira muito mais de Julia Lennon, a ex-mulher, do que dele. Agora, aos 58 anos, o pai de John voltava a procurar o primogênito. Trazia uma nova esposa, que ainda não completara 20 anos, e um bebê de colo, David. John viu-se projetado na criança, a quem, finalmente, Alfred assumia por inteiro como pai amoroso. Aquilo era demais para a sensibilidade esgarçada de John. Ele tratou o pai aos brados. Ameaçou até mandar matá-lo.

 

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Até a rainha da Inglaterra

Nunca mais pai e filho se veriam. Seis anos depois, eles se falaram pela última vez, pelo telefone, quando Alfred estava internado no Hospital Geral de Brighton, na Inglaterra, com um câncer de estômago terminal. Conversaram de maneira muito carinhosa e combinaram um reencontro que jamais ocorreu.

Nunca mais, também, John procuraria o terapeuta Arthur Janov, que, aos 91 anos, continua matando cachorro a grito em sua clínica na Califórnia. Nunca mais, ainda, gravaria um álbum tão despudorado, no sentido mais profundo da palavra, quanto Plastic Ono Band. Ou concederia uma entrevista tão reveladora quanto aquela para a Rolling Stoneninguém, na realidade, concederia. O próprio John se arrependeria mais tarde.

Freddie Lennon op Schiphol *18 maart 1966Ao recordar seu último encontro com o ex-beatle, o produtor George Martin lembrou-se de ter se queixado do teor da entrevista. Ao que John retrucou: “Eu estava totalmente chapado quando falei tudo aquilo. Você não levou a sério, levou?” O sempre polido Martin admitiu: “Eu havia ficado furioso com a entrevista. Acho que todo mundo ficou. Ele massacrou até a rainha da Inglaterra. Acho que não se esqueceu de ninguém”.   

Há uma curiosa coincidência. A entrevista ocorreu em 8 de dezembro de 1970, em Nova York. John Lennon foi assassinado por um cretino na mesma cidade, exatamente uma década depois. Pois é, no dia 8 de dezembro de 1980.

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