O mundo depois da tempestade

O mundo depois da tempestade

Quando a economia voltar a funcionar, o mercado de luxo pode ter menos viagens e mais consumo interno no Brasil

Por Freddy Rabbat

A crise devido ao novo coronavírus é um desafio para todos. Trata-se de uma guerra contra um inimigo invisível, diferente de tudo o que já vivemos. A perspectiva de ficarmos fechados por muito tempo é ruim e assustadora para todos que trabalham. Até porque uma depressão mundial pode estar batendo a nossa porta.

Quando o mercado voltar, isso tudo vai trazer bastante insegurança, especialmente para quem está desempregado e sem perspectiva de retorno ao mercado de trabalho. Existem várias teorias para o dia em que economia for religada. Alguns mercados, como os que têm mais influência de turismo, irão sofrer muito. Porque as viagens devem demorar muito a serem retomadas. Até porque as pessoas terão ainda muito receio de viajar.

Por outro lado, as economias que exportavam turistas podem ter algum ganho. Já temos dados da China, onde o mercado está voltando. Nesse ponto, o Brasil é muito semelhante ao gigante asiático. Nosso país é um grande exportador de consumidores. Para cada relógio vendido aqui, muitos brasileiros compravam peças fora. E isso vale para todo o mercado de luxo.

No passado, as pessoas consideravam uma vantagem comprar no exterior. Isso é algo que não existe mais. As marcas que faziam isso foram embora do Brasil e aquelas que sobraram conseguem fazer um preço igual ou até inferior ao que é praticado em outros mercados. O cliente comprava no exterior também por hábito.

Por conta disso, podemos prever esse fortalecimento do mercado interno, porque teremos uma retenção do consumo feito em viagens. Estou me referindo ao consumidor muito habituado a frequentar shoppings em outros países. Certamente, ele irá parar de viajar ou irá reduzir as suas saídas do país. Nesse novo cenário, o mundo vai estar mais fechado e cauteloso por essas questões de contágio.

Esse novo ambiente pode trazer ao Brasil uma mudança comportamental. Os consumidores irão adquirir roupas, relógios e joias aqui mesmo. Talvez, isso represente um considerável aumento de vendas para os lojistas locais. Países que eram tradicionais receptores desses turistas vão sofrer muito. Estou falando de países do Caribe e cidades como Paris, Nova York e Miami. Esses viajantes devem passar a comprar aqui no Brasil. Nosso país tem uma boa estrutura de venda para atender a esse público com shoppings de alto padrão e outlets.

Apesar dessa perspectiva, o mercado de luxo global faz uma previsão de queda de 25% neste ano. Particularmente, estimo que possa ser ainda maior. Em alguns segmentos, talvez com um percentual menos drástico. As pessoas estarão muito mais preocupadas com a recuperação da sua capacidade financeira, do seu trabalho, do que qualquer outra coisa nesse primeiro momento.

É possível avaliar alguns dados, como nas curvas de despesas em vestuário. Elas praticamente zeraram. Nesse setor, temos um percentual de menos de 15% de gasto na comparação com o mesmo período, no ano passado, no Brasil. São dados de administradoras de cartão de crédito que mostram o que pode acontecer no nosso mercado. Não se espera crescimento desse segmento. Tudo está muito exprimido.

O mercado de luxo não está sozinho nesse cenário nebuloso. Supermercados e farmácias tiveram uma movimentação não tão grande. Acreditava-se que iriam bombar. Mas isso foi só no início. As pessoas partiram para fazer estoques para se proteger. Achavam que iria faltar comida. Por enquanto, não vai faltar comida. A preocupação é faltar dinheiro. Então a venda dos supermercados está um pouco acima do que o normal. Mas nenhum absurdo. Das farmácias, já vem caindo. Está abaixo do mesmo período do ano passado. Postos de gasolina, por exemplo, já estão com vendas a menos da metade do ano passado.

Após o achatamento da curva de infectados da Covid-19, teremos o grande desafio de recuperação da economia. Os países vão precisar de muita criatividade para retomar o caminho do progresso. O brasileiro é muito criativo. Pensar nisso é um alento. E nosso mercado interno pode surpreender.

A dose do remédio

Nesta pandemia, temos de cuidar também das vítimas invisíveis: os desempregados

Por Flávio Rocha

É preciso deixar claro. A moeda dessa crise do coronavírus são vidas. E elas não são negociáveis. A questão que deve ser colocada é que existem vítimas invisíveis nessa pandemia. Além das pessoas que perderam a vida devido ao Covid-19, estão os desempregados, desalentados e aqueles que podem ser vitimados pela violência urbana.

Aquele empresário que está levantando o questionamento do caos econômico e social não deve ser visto como um vilão que só quer saber de dinheiro. Está se colocando um falso dilema, como se a humanidade estivesse dividida por aqueles de bom coração (que estão sofrendo com as vidas) e aqueles que falam em grana, ou economia.

Não é disso que se trata. Estamos falando, sim, das vidas visíveis, vitimadas por essa pandemia terrível. Precisamos colocar numa tela de radar uma infinidade de outras vítimas, as invisíveis. Porque desalento, desemprego, caos social e violência urbana também matam.

A comparação que cabe fazer é com um médico tratando um paciente de câncer. Ele tem de calcular a dosagem da sua quimioterapia. É possível, sim, acabar com o câncer. Pode-se aumentar a dose da medicação e destruir as células cancerígenas. O desafio, eis a questão, está em manter o paciente vivo. Pensando num paralelo com o Covod-19, é lógico que um isolamento total da população, por seis meses – num exemplo mais absurdo –, iria minimizar essas trágicas mortes por coronavírus. Porém, o dano colateral seria catastrófico.

Vejam o caso dos Estados Unidos. A maior economia do mundo teve um recorde de pedidos de seguro-desemprego. Chegou a ter 3,28 milhões de solicitações, contra 282 mil em dias anteriores à crise. O recorde anterior foi de 695 mil em 1982, de acordo com números do Departamento de Trabalho do EUA. A estimativa da consultoria Oxford Economics é de que o percentual de desempregados alcance os 20%.

O que pode acontecer no Brasil? É possível imaginar um desemprego muito maior por aqui. Isso mata em massa. Isso desorganiza a economia – e mata de fome. Não adianta a boa intenção de imprimir dinheiro se as gôndolas estiverem vazias, porque se desorganizaram as cadeias produtivas. O nome disso é hiperinflação.

É preciso observar a questão de forma sistêmica. Ao tirar a economia da tomada, podemos gerar muito mais vítimas já neste ano. Pode ser pior para essas vítimas invisíveis do que até os piores cenários para aqueles que sofreram com o coronavírus. Isto sem falar de uma recessão sem precedentes.

Não temos esse histórico. O que acontece quando você tira a economia da tomada? É como o forno de uma siderúrgica. É isso que torna de difícil execução essa prática do confinamento absoluto.

Não sabemos como as cadeias produtivas irão voltar a se organizar. O drama mais imediato é o que está acontecendo hoje. É a fome de quem está vendendo o almoço para comprar o jantar. Estou falando daquela pessoa que vive numa casa humilde e viu acabar todo o seu estoque de alimentos.

As empresas mais estruturadas conseguem se manter. No Grupo Guararapes, do qual a Riachuelo faz parte, estudamos todos os cenários de stress imagináveis, mesmo com a interrupção de 100% do fluxo de vendas. Estamos lidando também com a interrupção de pagamentos do cartão.

Claro, o foco número 1 é preservar o nosso bem mais preciso: o bem-estar do nosso time. Suspendemos as atividades em lojas. Mantivemos, no entanto, uma pequena unidade para produzir máscaras e aventais hospitalares doados aos hospitais. A missão agora também é proteger o caixa. Só vamos voltar a abrir quando tivermos segurança de que tudo isso poderá ser feito.

Nunca vimos um impacto dessa magnitude. Uma semana significa 2% de um ano. Cinco semanas são 10%. O que fazer? É possível incrementar a cultura do digital. Pode-se pensar em regimes diferentes em determinadas regiões do Brasil. Existem lugares com as suas peculiaridades.

Mas sou um otimista incorrigível. Varejista pessimista deveria procurar outra profissão. Nossa ferramenta de trabalho é o otimismo. Vamos sair mais fortes e maduros dessa crise. Não podemos ter uma visão estreita. Temos de preservar todas as vidas (e seus empregos). Não podemos deixar o remédio matar o paciente.

O século asiático

A crise do coronavírus torna ainda mais evidente a ascensão e poderio dos países orientais

Por Lawrence Pih

Muitos amigos têm me perguntado qual é minha opinião sobre a atual crise sem precedentes. Aqui estão alguns dos meus pensamentos. Não são, veja bem, verdades absolutas. Posso estar errado. Mas é o que penso.

Antes desta crise, vimos uma dissociação gradual das duas maiores economias do mundo, os EUA e a China. A rivalidade entre estes países teve uma virada mais ameaçadora, tanto econômica quanto geopoliticamente. As guerras comerciais e tecnológicas começaram a ocorrer não apenas entre eles, mas também entre os EUA e as principais economias do planeta, particularmente na frente comercial. O mundo já estava em um modo de confronto, antes do coronavírus. Eram as democracias liberais ocidentais desafiando modelos de governo autocrático. Era o laissez-faire versus governos centralizados. Eram os governos liberais contra aqueles com grande presença do Estado.

Todas as principais economias vinham surfando uma onda de bolhas de ativos. A maioria desses governos estava sobrecarregada fiscalmente. Os bancos centrais com poucas ferramentas e uma dívida massiva do setor privado apenas tornaram tais economias mais frágeis. Este era o mundo antes da crise atual.

E então veio a pandemia de Covid-19. Seu ritmo de contágio é assustador e sem a perspectiva de cura ou vacina em curto prazo. Alguns governos optaram por medidas draconianas de bloqueio, enquanto outros escolheram ações limitadas e menos restritivas. As democracias claramente têm mais dificuldade em implementar medidas draconianas. À medida que a pandemia piorava, esses governos democráticos não viram outra alternativa senão emular governos autoritários. Mas aqui está o problema: as pessoas que vivem em democracias liberais têm dificuldade em se adaptar a essas medidas de limitação da liberdade. Além disso, seus governos se preocupam com o custo econômico de tais ações. Aqui cabem duas perguntas. A primeira: a abordagem extremamente restritiva reduzirá a dor econômica e, como resultado, produzirá resultados econômicos mais favoráveis ​​a longo prazo e também salvará mais vidas? A segunda: ou uma abordagem mais moderada, apesar de colocar mais vidas em risco, produzirá ao final melhores resultados?

Quanto aos estímulos fiscais e monetários, eu, pessoalmente, preferiria favorecer os necessitados em vez dos negócios. Se focarmos no fato de que 40% da população dos EUA, o país mais rico do mundo, não têm uma reserva de U$ 500 para enfrentar uma emergência, o que dizer das nações países menos desenvolvidas? A verdadeira desigualdade de renda nos EUA é flagrante. E, vale dizer, isso também ocorre em muitos outros países desenvolvidos. Enfim, todos os esforços de socorro devem ter os necessitados como foco principal.

O que prevejo é o desenvolvimento de medicamentos que ajudarão o processo de cura e, posteriormente, uma vacina contra o vírus. Mas estamos lidando principalmente com uma infraestrutura de saúde mal preparada para enfrentar esses desafios. Investimos trilhões de dólares em armas e guerras, em superfluidades. Impomos enormes custos com negligência ambiental, desperdiçamos trilhões de dólares em ineficiências dos governos e favorecemos sistematicamente o 1% sobre os 99%.

Poderíamos estar mais bem preparados para esta crise, que, de resto, era previsível? Acredito que sim. Mas escolhemos não nos preparar. Esta crise se dissipará como todas as crises, mas deixará um custo pesado em muitas economias. As economias desenvolvidas ocidentais sobrecarregadas serão severamente atingidas.

Enquanto isso, os ex-tigres asiáticos, agora unidos pela gigantesca economia chinesa, representarão um novo e assustador desafio ao modelo ocidental. O Japão provavelmente optará por se conectar com seus vizinhos e, também com a Austrália e a Nova Zelândia. É questão de tempo.

Dois terços dos habitantes da Terra vivem na Ásia. A Índia terá a maior população até 2027 e será uma fonte formidável de oferta de mão-de-obra. Em sua luta por um melhor padrão de vida, os asiáticos estão prontos para conviver com enormes sacrifícios que populações muito mais ricas de países desenvolvidos não aceitam. As atuais políticas de imigração dos EUA são claramente xenófobas, o mesmo valendo, em menor grau, para os países europeus desenvolvidos. Isso levará a um movimento de fuga reversa do fluxo cerebral.

Hoje está claro que EUA e China estão lutando pela supremacia tecnológica, sem mencionar a geopolítica. As políticas recentes norte-americanas revelam profunda preocupação com o avanço asiático. Não era para menos. Os estudos STEM – sigla em inglês para Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática – estão avançando na Ásia, principalmente na China e também na Índia. Do ponto de vista demográfico, os países ocidentais desenvolvidos também estão ficando para trás. As economias não podem crescer com o envelhecimento e o baixo crescimento populacional. Se a lacuna deixar de ser preenchida pela imigração, as perspectivas de crescimento serão pouco alentadoras. Os países ocidentais enfrentarão desafios internos à medida que grande parte da população se sentir deixada de fora e que o modelo econômico existente estiver contra eles.

Veremos o confronto entre os que não têm e os que têm. Assistiremos ao embate entre socialistas contra capitalistas. Também veremos uma tendência em direção a governos mais autoritários no Ocidente, à medida que os fracassos em lidar com esta crise épica trouxerem à luz os benefícios de governos mais centralizados. A ironia é que os setores progressistas da sociedade querem mais participação do Estado, mas sem invadir sua liberdade. Isso parece mutuamente exclusivo.

Os conservadores querem menos participação do Estado governo, mas, paradoxalmente, clamam por um governo mais autoritário que atenda aos que têm. Estamos testemunhando um atoleiro ideológico. Nesse levante econômico, social, político e ideológico, podem surgir imprevistos.

Para os EUA, é sempre politicamente conveniente encontrar um inimigo estrangeiro quando dificuldades internas afloram. Nesse sentido, há algum bode expiatório melhor existe do que uma China cada vez mais forte e assertiva?

O confronto geralmente surge do erro de cálculo e a história está repleta de exemplos. Confronto ou não, é improvável que este não seja o século asiático. Minha esperança é que possamos navegar pacificamente por esses tempos difíceis. Devemos torcer para que os líderes se provem mais estadistas do que políticos.

Estou esperando demais?