Jane Birkin -­ Os anos 1960 em pessoa

Jane Birkin -­ Os anos 1960 em pessoa

A lindíssima Jane Birkin foi o espírito de uma época

Por Walterson Sardenberg Sº


Foto: David Bailey

Foi o único episódio em que o Exército, na ditadura militar, cercou uma fábrica de discos no Rio de Janeiro com a ordem de quebrar tudo, caso os operários continuassem prensando um disco. O tal compacto simples da Philips, naquele ano de 1969, não continha alguma gravação de Geraldo Vandré, Chico Buarque ou outro adversário do regime. Os 4 minutos e 21 segundos da canção Je t’aime, moi non plus nem sequer eram cantados em português — mas sussurrados em francês. Como algo assim provocou a mais radical reação contra um disco no Brasil? Simples: a acusação de pornografia.

Apoiado em românticos floreios de um órgão Hammond, o autor da música, o feioso francês Serge Gainsbourg, 42 anos, dividia os versos com uma linda inglesinha duas décadas mais jovem, Jane Birkin, sua nova mulher. A letra era picante. Entre outras audácias, murmurava: Je vais et je viens, entre tes reins (“Vou e venho entre os seus rins”). Mas o mundo se acabou não pelo estrondo das palavras, e sim pelos gemidos. No final da gravação, Jane se derretia em um escancarado orgasmo.

Foi o escândalo musical da década. Espanha e Suécia proibiram o disco. A rainha Juliana da Holanda — uma das sócias da Philips — baniu-o tão logo soube do alvoroço. Na Itália foi pior. O chefe local da gravadora acabou excomungado e preso, depois de o Vaticano revoltar-se contra a “obscenidade”. No Brasil, o diretor da Philips, André Midani, correu para a fábrica e interrompeu a prensagem. Aos fãs de Jane, restava gravar em minicassete — por ironia, uma criação da Philips — o compacto simples de algum amigo felizardo, colecionar os pôsteres da cantora e encarar uma discussão bizantina: Serge e sua musa estavam mesmo fazendo aquilo no estúdio ou não passava de simulação?

Havia outra questão: o que aquela gatinha estupenda, de imensos olhos azuis, boca carnuda, pequenos seios empinadinhos e voz aliciante, embora também diminuta, enxergara no sujeito de orelhas de abano? Por que aquela maravilha de mulher, a melhor encarnação da falsa magra, com ares de Lolita mas coxas irresistíveis e cintura bem delineada, se unira a um narigudo inchado de birita?

Se inveja de fato matasse, os fãs de Jane Birkin, não teriam sobrevivido. Para piorar, Serge, apesar de mal-ajambrado, tinha reputação de sedutor. Gravara a mesma Je t’aime dois anos antes com Brigitte Bardot, outra de suas conquistas. BB descartara o lançamento do disco por intervenção do namorado oficial e corno oficioso, o playboy Gunther Sachs.

Não bastasse, Serge era talentoso, provocador — chegaria a gravar A Marselhesa em reggae —, e, ainda, um multimídia avant la lettre, embora também fosse vulgar e manguaceiro renitente. OK, Jane podia não ter tantos pendores — nem tantos defeitos. Ainda assim, mais do que Serge, ela era os anos 1960.

Vejamos. James Bond, nudez, cinema de vanguarda, liberação sexual, Beatles, David Bailey, moda insolente, maio de 1968 e orientalismo formam um painel — a palavra da moda era bricollage — da década. Pois Jane, de uma ou outra forma, esteve em todas.

Filha de Judy Campbell, uma atriz de prestígio — era a preferida do divertido dramaturgo Nöel Coward —, estreou no teatro aos 17 anos, onde conheceu John Barry, autor das primeiras canções-tema do 007. Casou-se com ele, teve a filha Kate e logo separou-se. Emblema da Swinging London, com minissaias que caberiam melhor na palavra micro — se é que, mesmo assim, não ficariam curtas demais—, tornou-se musa do fotógrafo David Bailey, o inspirador do longa-metragem Blow-Up (Depois Daquele Beijo), de Michelangelo Antonioni. No filme, Jane protagonizou o primeiro nu frontal do cinema britânico. Pouco mais tarde estaria vivendo a personagem Penny Lane no longa Wonderwall, de Joe Massot, com trilha sonora de George Harrison. Haja cítaras.

Foi quando Gainsbourg meteu o nariz onde foi chamado. Havia sido convidado pelo cineasta Pierre Grimblat para o papel principal do filme Slogan. Faltava escolher sua partner. Marisa Berenson chegou a ser cogitada. Grimblat preferiu Jane, a quem conheceu — onde mais? — na Kings Road, a rua londrina da moda. A inglesinha viajou a Paris tremendo de medo. Não falava francês. Aprendeu rudimentos do idioma com o criado de Grimblat — um chinês, aliás. Os temores de Jane não eram infundados. Apresentada a Gainsbourg, considerou o feioso não só arrogante, como sarcástico. Ele nem precisou se esforçar.

Grimblat os aproximou. O cineasta levou o casal à boate Regine’s e saiu de fininho. Foi uma noite de muita bebida e esticadas. A última delas no Hilton Hotel, onde a atriz assustou-se ao ouvir o recepcionista perguntar ao misto de Cyrano de Bergerac com Dumbo (pois é, a maldita inveja): “O quarto de sempre, senhor?”

Jane entrou na suíte e escondeu-se no toalete. Pensava: “Caramba, como fui me meter nisso?” Até então tinha tido um único homem e estava prestes a conhecer biblicamente o segundo, logo no primeiro encontro. Não foi daquela feita. Quando voltou ao quarto, topou com Gainsbourg roncando.

Jane estreou como cantora gravando a canção-título de Slogan, composta por Serge, enquanto o diretor do filme — um sucesso de público, por sinal — amargava a perda de seu Porsche, explodido pelos estudantes no Boulevard Saint-Germain, em maio de 1968. Já então Jane e Serge iam fundo em uma relação neurótica e apaixonada, que nem mesmo uma mística viagem ao Nepal apaziguou. Ele a levara para sua particular versão parisiense do castelo de Cinderela: um sobrado com o interior todo pintado de preto — como se levasse a sério a recomendação dos Stones em Paint it Black —, onde nem Jane, nem a enteada Kate e tampouco Charlotte, a festejada filha do casal, podiam tocar em nada sem a aquiescência do rei.

Gaisnbourg jamais foi violento. Era até frágil. Mas fazia questão de escolher as roupas da mulher e até de decidir o que ela iria comer. Da porta preta para fora, incentivava Jane a participar de filmes atrevidos como Don Juan. Nele, a atriz foi para a cama com — veja só — Brigitte Bardot. Ousadíssimo, até escolheu a mulher para um dos papéis principais do filme barra pesada que dirigiu, com o obsessivo título Je t’aime, mois non plus (no Brasil, Paixão Selvagem). Na fita, Jane, com cabelos à la garçonne, se faz passar por um homossexual e atrai um caminhoneiro gay, vivido por Joe Dallesandro — ator-fetiche de Andy Warhol —, que transa com a atriz como se ela fosse um rapaz. Mais um escândalo. Jane, sempre convidada para comédias leves, só foi arrumar trabalho no cinema passados três longos invernos.

Fora da casa toda negra da rua Verneuil, Gainsbourg participou, sobretudo, da carreira musical da mulher. Compôs para ela clássicos do quilate de 69 Anée Érotique e Mon Amour Baiseur, no qual relata 21 maneiras de beijar alguém. Esse pigmaleão 24 horas, contudo, atazanou Jane a ponto de ela atirar-se no rio Sena em uma noite fria, depois de uma discussão. Os bombeiros tiveram trabalho duplo. Serge, embriagado, também se jogara nas águas geladas.
Cansada do papel de bonequinha, Jane largou o mal-apessoado para unir-se ao cineasta Jacques Doillon, que a dirigira em La fille prodigue, outro sucesso. Para variar, teve mais uma filha, Lou — estava grávida dela antes de deixar a casa dark. Inconformado, Gainsbourg continuou a assediá-la. Embora não fossem mais um casal, permaneceu seu mentor. Era o homem por trás do melhor álbum de Jane, Baby Alone in Babylone, de 1983, disco de ouro na França. Assim continuou até 1990, quando morreu em frangalhos, depois de décadas de excessos. A ex-mulher e os amigos velaram seu corpo por três dias.

A partir daí, o que aconteceu com Baby Jane? A ex-bonequinha, agora madura, tornou-se uma marca pop. Se, em homenagem a Jane, a centenária grife Hermès lançara uma bolsa com seu nome — hoje, um clássico —, a passagem dos anos tornaram a inglesinha mais francesa da história ainda mais influente entre os descolados. Seu disco ao vivo de 1987, Au Bataclan, foi a inspiração da banda Baby Birkin. Outra: Agnès Varda, a única cineasta mulher da nouvelle vague, filmou a vida da atriz, em Jane B par Agnès V. A própria Jane rodou sua velada autobiografia, Boxes (Caixas), com ninguém menos que Michel Piccoli e Geraldine Chaplin como os seus pais. Sem contar, claro, shows e gravações com Franz Ferdinand, Manu Chao, Beck e Caetano Veloso, fãs declarados.

Tem mais: a militância de Jane na Anistia Internacional e outras campanhas humanitárias concederam a ela condecorações dos governos britânico e francês. Além disso, suas filhas Charlotte Gainsbourg e Lou Doillon — esta a cara da mãe, curtida e escaneada — viraram bem-sucedidas cantoras e atrizes. A primogênita, Kate Barry, era uma fotógrafa de moda renomada, ao cair de um edifício para a morte, no ano passado, em Paris. Um acidente, especula-se.

Ao contrário de muitas companheiras de geração, a despojada Jane descarta botox e até maquiagem. Quando esteve há alguns anos no Rio — cidade em que o Exército quase destruiu uma fábrica por causa de sua voz —, entrou num ônibus de linha, comum, para chegar ao Corcovado, sem nenhum estrelismo. Na ocasião, declarou-se “viúva de Gainsbourg, ainda que tenha tido outro marido”. Mesmo fora do castelo de ébano, o ectoplasma do cantor e compositor continua reinando. Quanto àquela antiga dúvida sobre as circunstâncias da gravação de Je t’aime, Gainsbourg esclarecera, muitos anos depois do escândalo: “É claro que não transamos no estúdio. Fosse assim e não teria sido um compacto, mas um LP”.
Infame narigudo!

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