Cheiro de Dinheiro

Cheiro de Dinheiro

Sigam aquele cheiro! ­ O dinheiro deixa um rastro, passível de farejar. E de reconhecer nele a própria história humana.

Por Marion Frank

Mesas de sinuca, ambiente masculino, noite.

Bolas se entrechocam e caem em caçapas. Fachos de luz destacam espirais de fumaça: há muitos cigarros acesos na sala lotada. Quem joga, essa é a impressão, joga o que há de mais valioso na vida. Uma porta, de repente, se abre para dois homens e uma mulher. O mais velho olha ao redor. “Estão sentindo um cheiro no ar?”, indaga, animado. O mais novo faz cara de dúvida, mas a mulher responde na lata: “Money”.

Martin Scorsese adora dinheiro, melhor, adora fazer do dinheiro o pano de fundo dos seus filmes. A cena de bilhar pertence a um trabalho de 1986, “A Cor do Dinheiro” (que rendeu um Oscar a Paul Newman). Outros exemplos existem, o mais recente intitulado “O Lobo de Wall Street” (que não resultou, aliás, em prêmio algum da Academia a Leonardo DiCaprio…). Nele, entre outras “estripulias”, a personagem principal usa a nota de 100 dólares para cheirar cocaína – hábito corriqueiro, o roteiro insinua, entre os que ganham fortunas no mercado de capitais. Grana de cheiro duvidoso, em suma. “O meu desafio foi mostrar como as pessoas desse mundo venciam todos os obstáculos, usando dinheiro, drogas e poder”, disse Scorsese, quando do lançamento do filme, no ano passado.

Dinheiro pode tudo, isso está claro. Mas, quando vinculado a cheiros, provoca associações as mais díspares, um emaranhado de emoções e conteúdos. Para o magnata Donald Trump, por exemplo, o cheiro que importa é o do jogo, “… dinheiro nunca foi uma grande motivação para mim, mas sim uma espécie de placar, o que realmente estimula é jogar.” Outro milionário, Aristóteles Onassis, fez questão de deixar claro que o dinheiro só lhe inspirou um cheiro ao longo da vida (69 anos): o do sexo oposto. “Se as mulheres não existissem, todo o dinheiro do mundo não teria sentido”. E o que uma mulher do porte de Coco Chanel diria a respeito? “Existem pessoas que têm dinheiro e pessoas que são ricas”, fulminou a estilista, que sempre priorizou o cheiro da elegância.

Resolvi provocar os amigos para apimentar esta coleção singular de aromas. Recebi por e-mail um traço da personalidade de cada um. “Dinheiro cheira a fantasia, o que eu faria se ganhasse milhões na loteria…”, disse o maestro. “Cheira a confusão, matéria viva para muitos anos de duelo ao estilo sueco”, disse a poeta. “Cheira a chulé”, disse a pianista.

Lá atrás, o cheiro era de xixi. O imperador Vespasiano, que viveu entre os anos 9 e 79 da nossa era, queria porque queria aumentar os recursos do seu governo, daí a ideia de taxar imposto sobre os mictórios públicos – mais de 100, na Roma antiga. Tito, seu filho, achou um absurdo. O pai? Não deixou barato: pegou uma moeda, entre as primeiras dos usuários, e deu para o filho cheirar; e, como Tito não sentiu nada, saiu-se com esta: “O cheiro que lhe incomoda provém da urina… Dinheiro não tem cheiro”. Pecunia non olet, em latim.

Acontece que tem. E o dinheiro mais cheiroso do mundo, garantem os especialistas, é o dólar, cujo papel-moeda é resultado da mistura de 75% de fibras de algodão e 25%, de linho (o real só leva algodão). O Banco Central do Canadá, recentemente teve de dar explicações sobre um suposto cheiro de “xarope de bordo”, árvore típica do país, que muitos começaram a sentir nas novas cédulas de 100 dólares (e outros não). Aparece então em cena um pesquisador da universidade de Leipzig, Dietmar Glindemann, para apontar um ponto nevrálgico dessa história: “Moedas não exalam nada até serem tocadas pelo homem”. Sim, dinheiro pode ser bem sujo, o que tem feito pais e mães transmitirem aos filhos a instrução de lavar as mãos após mexer no dito-cujo. Mas as ilações pipocam (muito mais do que os micróbios, sorry…). “Para mim, o dinheiro é neutro”, opina Eladia Blanco, psicóloga e terapeuta floral. “Tudo vai depender do modo como o homem pretende usá-lo.”

Não foi apenas com os amigos que acabei usando o tema a título de provocação. Usei a web, no que ela tem de melhor, para provocar a mim mesma – juízos de valor sobre os meus pares. Dinheiro e cheiro, enquanto palavras-chave de uma pesquisa, trazem à tona o que sintetiza a atualidade: corrupção e decadência (políticos); energia e prosperidade (esotéricos); ganância e imoralidade (jovens). “O cheiro de dinheiro atiça interesseira/ que quando escuta um carro se molha igual cachoeira/ sem caráter, sem conduta, puta baladeira…”, canta Nocivo Shomon, no hit hip-hop Babilônia. E tem mais.

Sina Vatanpour, professor da Universidade de Lille III-Charles de Gaulle, na França, é um especialista em civilização e cultura norte-americana, com vasta pesquisa sobre o dinheiro na literatura e no cinema daquele país. Exemplo: um clássico de Norman Mailer, O Sonho Americano (a personagem central, herói de guerra que se torna celebridade da TV, tem um ataque de fúria, mata a esposa e tenta forjar um suicídio, destruindo o modelo virtuoso que lhe fora imposto pela sociedade), serve para Vatanpour avaliar como o tema do dinheiro conduz “…às profundezas do texto, questionando os valores históricos e tradicionais do país, como o sonho americano, o mito do sucesso e a busca do poder”. Em outro livro, esse made in Brazil (O Executivo e o Martelo – Reflexões fora da caixa sobre Ética nos Negócios, de Clóvis de Barros Filho e Arthur Meucci), há um capítulo dedicado ao lucro – de como o dinheiro pode cheirar mal, entre outros aspectos, quando acumulado apenas visando o lucro, o poder. E, como quem tem dinheiro se sente o todo-poderoso, há quem compare o dinheiro a uma espécie de Deus, ou, ainda, ao “poder em potência”, na definição de Meucci (que é professor de filosofia e psicanalista). “Dinheiro tem mesmo isso de deixar um cheiro em seu rastro, afinal, ele pode comprar uma casa, um político, uma segunda esposa… É o cheiro da sedução tanto para quem ganha quanto para quem ele pretende comprar”, analisa. Um cheiro doce, ok, “mas que pode levar à diabetes e ser mortal”.

E seria possível se manter impenetrável a esse cheiro? “Impenetrável não, mas refratário ao domínio sim”, opina outro filósofo, Mario Sergio Cortella (que também é escritor e educador). “Como bem lembrava Millôr Fernandes, ‘o importante é ter sem que o ter te tenha’, isto é, não ser possuído por aquilo que você possui.”

Ele não é meu amigo, mas me tratou como tal. Gustavo Dainezi, filósofo e professor convidado da ECA-USP, em resposta às minhas perguntas sobre o tema, deixou entrever a alma. “Pense em ir para a rua sem a sua carteira… Você se transforma em um ser de outra espécie. Olha-se ao redor e descobre-se que nem sequer um banheiro está à disposição… Não pensar em acumular dinheiro (e se manter, portanto impenetrável ao seu cheiro) contraria o próprio instinto de sobrevivência… Hoje viver é vender e comprar. Não importa o quê”.

A nota foi divulgada em novembro de 2013, mas diz respeito ao que já faz sucesso desde 2009: o China Citic Bank (CCB) aumentou para mais de 5 milhões o total de mulheres correntistas com a oferta de um cartão de crédito particular, o Fragrant Card. Que fragrância tem esse cartão não foi revelado, mas sim o fato de “se tratar de uma das ações da estratégia de marketing para fidelizar a clientela feminina”, resumiu Wang Jian, da diretoria do CCB. Lançado há três anos, His and Hers Liquid Money Fragrance foi ideia do vice-presidente da Microsoft, Patrick McCarthy, de tornar “as pessoas mais confiantes” – ele jura que, tanto na versão masculina quanto na feminina, há o aroma do dinheiro recém-impresso. E também vem dos EUA a notícia (01/2014) sobre The Scent Rhythm, última criação de Aisen Caro Chacin, espécie de Professor Pardal de saias. Trata-se de um relógio que emite aromas de acordo com a passagem do tempo – e do nosso relógio mais íntimo, o circadiano. Assim, o relógio está programado para emitir cheiro de café pela manhã, de uísque, no início da noite, e de camomila, na hora de dormir. O período das 12 às 18h fica reservado para o cheiro de dinheiro, mistura de papel, metal e ginko biloba – tudo para fazer o indivíduo se sentir ainda mais ativo. Ah! The Scent Rhythm ainda é um protótipo.

Foi então que recebi a mensagem que iluminou o horizonte particular. Porque isso de costurar minimamente a história entre homens e dinheiro consome, causa fadiga (emocional e não só). Era o depoimento de Ignácio de Loyola Brandão, “produzido em 20 minutos, às vésperas de uma viagem para Minas, foi o que deu para fazer…” E que é reproduzido na íntegra, entre outras razões, por deixar aberta a janela – e renovar o ar.

“Dinheiro cheira? Nota nova cheira bem. Meu padrinho, quando eu era criança, tinha o costume de, vez ou outra, me trazer uma nota novinha em folha, ele tinha amigos no banco. Dizia: cheire, veja que cheiro bom o dinheiro novo tem! Eu guardava aquelas notas dentro de um livro na biblioteca de meu pai. Era um romance chamado Ouro Sobre Azul, do Visconde de Taunay. O livro andou de casa em casa depois que meu pai morreu, nunca ninguém o abriu. Recentemente, reconquistei-o, abri aflito. Ali estavam todas as velhas notas, agora com o cheiro de dinheiro amanhecido, não usado. E elas me trouxeram aquele afeto de um padrinho que me dava o dinheiro para assistir a matinê de domingo. Claro, algumas usei, não podia perder o seriado.

Havia, vizinho de casa em Araraquara, um velho sovina que morava num tugúrio e vendia ovos de casa em casa. Um dia, depois de uma chuva, vimos o velho Roque desesperado gritando na rua. Ele estava fora, uma goteira molhou o colchão onde guardava o dinheiro, tudo mofou. Fomos ver, tinha um cheiro esquisito, aquelas notas amarfanhadas. Muito ruim. O banco não quis receber. Ele passou dias e dias limpando a notas, lavando, passando a ferro. Não deu certo. Dizia: “E agora? Gostava tanto de dormir sobre o meu dinheiro cheiroso!”

Jovem, numa pensão do Pari onde morei assim que cheguei a São Paulo, havia uma solteirona linda. Bem vestida, sensual, glamorosa, tinha vestidos caros, estampados. De vez em quando um senhor vinha buscá-la, saíam, ela voltava dois, três dias depois. A dona da pensão comentava: “Essa aí cheira dinheiro”. Na verdade, eram duas expressões em uma. Cheira dinheiro, significando que ela sabia detectar o que era interessante para ela, tinha olfato. E cheira a dinheiro, porque nunca lhe faltava nada.”

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