Ilhas do Desejo

Ilhas do Desejo

Quando os europeus desembarcaram nas terras isoladas do Pacífico, descobriram uma liberdade sexual
que o mundo nunca mais veria.

Por Walterson Sardenberg Sº

A ilha de Oahu, a mais populosa do Havaí, pode se gabar do único zoológico do planeta que exibe seres humanos. Exatamente. Esse inacreditável zoo, embora sem jaulas, tem divisões e cercas. Em cada uma delas uma média de dez pessoas pacatas remontam, a partir de uma perspectiva americaníssima, o modo de vida original dos nativos do lendário Pacífico Sul.

Os turistas, muitos deles trajando floridas camisas havaianas, são guiados por corredores de uma assepsia hospitalar até cada um desses hábitats – talvez a palavra estande caiba melhor. Uma cerca separa supostos moradores de Tonga; outra, presumíveis nativos de Samoa; uma terceira, prováveis originários de Fiji. E assim por diante. A visita termina com um show de danças típicas havaianas. Um espetáculo com a pretensão de uma superprodução do cineasta Cecil B. DeMille, só que rodada com o orçamento de um curta-metragem brasileiro. O mais contraditório: cada dançarino veste-se com um pudor vitoriano.

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Moorea, nas Ilhas da Sociedade, um dos cinco arquipélagos da Polinésia Francesa

 

O fato de o zoológico de seres humanos, batizado de Centro Cultural da Polinésia, ter a administração de uma universidade mórmon explica o bom-mocismo, a assepsia e os trajes. Mas torna ainda mais esdrúxulo – ou “bizarro”, diriam os surfistas – o contraste em relação às antigas culturas dos moradores das ilhas distantes do Pacífico.

Para notar essa discrepância, basta ler os picantes relatos dos primeiros homens brancos a pisar nessas porções insulares. Abismados, os pioneiros narraram a incomparável liberdade sexual dos nativos, que não revelavam qualquer interesse por indumentária. Menos ainda por puritanismo. Queriam mais é rosetar – sem um tiquinho de culpa.

Tão logo desembarcou no Havaí, em 1778, o capitão inglês James Cook imaginou que os missionários teriam um trabalho danado. Um desses religiosos, desolado, se deu ao cuidado de contar: os havaianos praticavam 20 formas daquilo que considerava “coitos ilícitos”. Quanto aos tripulantes dos dois navios da frota, não tinham essa preocupação aritmética. Também só queriam rosetar, depois de meses vendo apenas mar e mar pela frente. Dado o seu isolamento, o Havaí foi uma das últimas terras encontradas pelos europeus, com a Revolução Industrial já soprando a todo vapor.

Sensato, Cook proibiu os comandados de terem relações sexuais com as nativas, para não disseminar “o Mal Venéreo” – assim mesmo, com maiúsculas. A grande maioria não lhe deu trela. Resistir, quem há de? O galês David Samwell, assistente do médico da expedição e poeta menor, teceu loas à plástica das moças, “em geral, extremamente belas”, e assustou-se ao perceber que a sedução partia daquelas beldades morenas, com inestimável volúpia. “Elas usavam de todos os artifícios para atrair os nossos para dentro de suas casas e, vendo que não cederiam às suas lisonjas, procuravam forçá-los e eram tão inconvenientes que se recusavam totalmente a aceitar qualquer negativa.”

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Louis-Antoine de Bougainville teceu loas sobre o Taití no livro “Viagem ao Redor do Mundo (1766-1769)”

Impacientes em aguardar os marujos em terra firme, as vahines – nome que ainda denomina as mulheres das ilhas do Pacífico – nadavam até os navios, “como Vênus surgindo das ondas”, no diagnóstico de Samwell. Os próprios nativos levavam para bordo suas irmãs, filhas e, possivelmente, mulheres.

O alfabeto havaiano tem apenas 12 letras. Isso obriga a dar o nome de humuhumunukunukuapuaa ao peixe-porco, de apenas 15 centímetros. No entanto, uma palavra curta, le’a, abrangia um significado amplo, designando toda uma filosofia de vida: júbilo, prazer, satisfação sexual, orgasmo, alegria, felicidade.
Era com cantos e poesias que os havaianos comemoraram os rituais de passagem. Um deles, o wãwãhi, consistia no inalienável direito do chefe de desvirginar uma jovem, para orgulho da família da moça – ainda maior se a garota engravidasse do mandachuva. Outro rito comemorava o fitness da época: a aprendizagem do controle absoluto dos músculos vaginais, a prática do ‘amo’amo.

Também era motivo de festa a iniciação sexual dos jovens chefes pelas mulheres mais velhas, numa sociedade poligâmica em que havia mais incesto do que nas obras completas de Nelson Rodrigues. O sistema de relacionamentos permitia, ainda, a homossexualidade, além da hipogamia e a hipergamia (casamentos entre indivíduos de classes sociais diferentes), em meio a outros vocábulos que até mesmo Freud teria de procurar no dicionário.

Doçura do amor

Também nas ilhas Fiji os europeus usufruíram das benesses sexuais, embora as mulheres estivessem bem aquém das havaianas no critério beleza. Quem já viu uma fijiana típica, irá supor que os marujos mais exigentes – dos raros que havia – teriam preferido apenas de usar as palavras bula (“olá”) e wanaka (“adeus”), como cumprimento formal, sem maiores intimidades com as nativas. Não foi a falta de graça das mulheres, todavia, o que mais surpreendeu os holandeses (os primeiros a chegar) e os ingleses, e sim o fato de os fijianos terem resolvido umas das mais polêmicas questões ontológicas: o homem é essencialmente bom. Desde que assado na brasa, bem entendido.

Ratu Udre Udre, um dos chefes locais, não era chegado a filosofices. Prático e voraz, ao longo da existência no século 19 comeu, no sentido lato do verbo, 999 infelizes. Sua proeza já encabeçou a lista do Guinness, em uma edição do Livro dos Recordes que parece ter sido redigida pelo Ratinho. Os ingleses, claro, proibiram com veemência o cardápio fijiano – embora, ainda hoje, muita gente boa olhe com profundo desprezo para a gastronomia britânica.

Apesar desse horror, o relato dos Mares do Sul que teve mais repercussão na Europa está no livro Viagem ao Redor do Mundo (1766-1769), de Louis-Antoine de Bougainville. Pudera. O homem tinha inegável prestígio. Antes de se tornar navegante e explorador, fora um matemático brilhante e um militar de destaque. O fato de seu nome ser, hoje, mais lembrado por batizar uma família de plantas floridas, as buganvílias, é uma dessas insidiosas injustiças da história. Por ironia, trata-se de plantas trepadeiras.

As descrições de Bougainville da recepção aos europeus na ilha do Taiti – hoje integrante de um dos cinco grandes arquipélagos da Polinésia Francesa – são semelhantes às da esquadra de James Cook, embora colhidas dez anos antes e mais caprichadas no estilo. No livro, depois de reforçar a beleza das ilhoas, que no seu entender deixavam as europeias a ver navios, ou melhor, pirogas (embarcações polinésias feitas de um só tronco escavado), o cientista também se rende, embevecido, à “disponibilidade” das vahines. “O consentimento delas não é difícil de obter, e o ciúme é aqui um sentimento inexistente”, escreveu. “Uma moça não experimenta a este respeito nenhuma vergonha. Tudo a convida a seguir a inclinação de seu coração e a lei de seus sentimentos.”

Mais adiante: “O ar que se respira, as danças acompanhadas de posturas lascivas, tudo recorda a cada instante as doçuras do amor, tudo clama por entregar-se”. Bougainville também suspirava com a hospitalidade dos nativos: “A fidalguia dos donos da casa não se limitava a uma ligeira refeição: eles ofereciam jovenzinhas. (…) Uma multidão de homens e mulheres formava um círculo ao redor do hóspede e da jovem vítima do dever hospitaleiro. O solo era coberto de folhagem e flores; e os músicos cantavam às notas da flauta um hino de casamento”.

Bons selvagens

Uma década antes de fundear no Havaí, o capitão James Cook também esteve no Taiti. Seu testemunho: “Um rapaz, com cerca de 1,80 metro, executava os ritos de Vênus com uma jovenzinha de 11 a 12 anos, diante de alguns dos nossos e de um grande número de nativos, sem o menor sentimento de que aquilo era indecente ou impróprio. Estava em perfeita conformidade com as leis do lugar”. Foi esse comportamento das nativas que ocasionou no Taiti, em 1788, o célebre motim do navio Bounty. Para desespero do capitão William Bligh, os tripulantes se recusaram a continuar a viagem rumo ao Caribe. Optaram por refestelar-se em êxtase nos braços trigueiros das aborígenes. Com efeito, era mais apetecível do que singrar mares bravios transportando fruta-pão.

A ideia de uma sociedade feliz, igualitária e sem a noção do pecado reverberou entre leitores de Bougainville e intelectuais da Europa. No livro Povos e Impérios, o historiador britânico Anthony Pagden, professor da Universidade da Califórnia, registra: “Os taitianos pareciam revelar, como nenhum outro povo ‘primitivo’, a prova de que em algum lugar do mundo era possível viver vidas plenas, para além dos dogmas religiosos, leis e convenções sociais”. Outro reverenciado historiador inglês, Arnold Whitridge, assinala que, com o regresso dos navegantes à Europa, “os homens começaram a jogar com a ideia de que a civilização, tal como eles haviam conhecido, havia fracassado de alguma forma em seu propósito, e que o homem primitivo estava muito melhor que o europeu”. Nos animados cafés parisienses, Charles Fetche, velho amigo de Bougainville, bradava: o pudor dos europeus era um “fruto da corrupção dos costumes”.

Embora não tenham navegado nas pirogas polinésias, filósofos de respeito – entre eles, Denis Diderot – embarcaram na ideia da existência de uma sociedade livre e pura, mas muito longe de ser puritana. Estava confirmado o mito do “bom selvagem”, uma criatura imune à culpa religiosa e à ganância mercantilista – utopia criada pouco antes das viagens aos Mares do Sul por outro luminar, o suíço Jean-Jacques Rousseau.

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As vahines, segundo Paul Gauguin, em 1901

 

Ménage à trois

Muito bonito. Contudo, uma leitura mais atenta daqueles livros revela que o Éden do Pacífico não era essa maravilha toda. Bougainville registrou uma óbvia divisão de classes no Taiti. Por exemplo: a carne e os melhores peixes eram reservados às refeições dos chefes. James Cook, por seu turno, não deu sorte em seu retorno ao Havaí. De início tomado como se fosse um deus, o navegante acabou apunhalado pelas costas, ao pé da letra, e morreu.

Ainda assim, o mito das sociedades idealizadas das ilhas do Pacífico perdurou. Em 1837, o francês Jacques-Antoine Moerenhout publicou Viagem às Ilhas do Pacífico. Esse livro levou um conterrâneo, o pintor Paul Gauguin, a bandear-se para a Polinésia Francesa, onde morou, retratou as vahines e morreu, de sífilis, em 1903, aos 55 anos. O artista aproveitou as informações de Moerenhout em um diminuto livro ilustrado, Antigo Culto Maori. Das 54 páginas, nada menos que 21 tratam de sexo. Aliás, uma obsessão de Gauguin.

Mesmo na primeira metade do século passado o mito sobrevivia. O cineasta alemão F. W. Murnau armou uma guerra contra os estúdios de Hollywood para viajar ao Taiti, onde rodou a sua derradeira obra. O filme, Tabu, de 1931, é considerado o precursor do cinema independente, além de um clássico onipresente no ranking dos melhores de todos os tempos. Murnau passara boa parte da vida sob a ameaça do Código Penal alemão, que punia o homossexualismo e servia a todo tipo de chantagem. Em Bora-Bora, filmando somente com nativos, afirmou ter descoberto a sexualidade livre dos polinésios e entrou em êxtase.

Já a antropóloga americana Margaret Mead encantou-se com uma suposta ausência de repressão sexual e competição entre os adolescentes de Samoa. Ela voltou aos EUA no vértice de um triângulo amoroso com os colegas de ofício Reo Fortune (o marido) e Gregory Bateson. Seria leviandade aduzir que sua pesquisa etnográfica teria alguma relação de causa e efeito com esse ménage à trois. Em todo caso, a própria Margaret, mais tarde, se retratou. Não do adultério. Mas das interpretações equivocadas do Shangri-Lá que havia relatado.

Povinho desavergonhado

Hoje Samoa são duas. Uma tão americana quanto um programa de TV sobre armas de fogo. Outra, uma ilha em que se luta muito mais pelo ganha-pão do que pela liberdade sexual. Já o Taiti viu-se transformado em endereço para a lua de mel de gente aquinhoada por orçamento folgadíssimo. Sobretudo, em duas ilhas vizinhas: Bora-Bora e Tetiaroa. Esta última foi comprada em 1962 por Marlon Brando. Na ocasião, o ator trabalhava em um filme sobre a já citada insurreição do Bounty (O Grande Motim, dirigido por Lewis Milestone). Apaixonou-se por sua partner, a belíssima vahine e atriz Tarita Teriipaia, com quem se casou. No ano passado, a ilha foi convertida no mais exclusivo resort da Polinésia. Chama-se Brando. Também Fiji é uma coleção de ilhotas com resorts caros. Em uma delas, o guitarrista Keith Richards caiu de cabeça – e, em virtude da queda, foi obrigado a fazer uma cirurgia cerebral. Nas duas ilhas maiores do arquipélago, reina a tensão entre os descendentes da população original (pobre e ressentida) e os indianos (trazidos pelos ingleses), chefões da economia local.

Embora distante 4 mil quilômetros da Califórnia, o Havaí tornou-se, em 1959, um dos 50 estados americanos. Uma curiosidade: foi incorporado à federação seis meses e 20 dias após a Revolução Cubana. A capital, Honolulu, é tão multiétnica quanto Nova York ou São Paulo. Basta percorrer alguns de seus quarteirões para notar: foi-se quase tudo da cultura original. Aos visitantes resta usar cinco letras, para a saudação aloha, depois de receber o lei, o colar de flores. Há também, claro, as camisas floridas, o maior símbolo do Havaí.

Ironicamente, elas foram levadas pelos missionários. Nada têm a ver com os havaianos, portanto. As flores, por absoluto acaso, estampavam os tecidos mais baratos, ordinários mesmo, comprados pelos religiosos para vestir os nativos do arquipélago. Os evangélicos estavam ávidos para cobrir as vergonhas daquele povinho desavergonhado.tabu-29-08-2012-as-07-57-12

Tabu, de 1931, rodado por F. Murnau na Polinésia Francesa, inventou o cinema independente

 

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