A lendária vinícola francesa Cheval Blanc veio de corpo e alma produzir um tinto de primeira linha na Argentina.
Por Mauro Marcelo Alves
O vinho mais caro leiloado até hoje é um Cheval Blanc 1947, uma das safras inesquecíveis da história de Bordeaux. A venda ocorreu em novembro de 2010 durante um leilão organizado pela Christie’s, em Genebra. Um colecionador suíço anônimo pagou US$ 304.375 pela raridade. OK, era uma garrafa impériale de 6 litros – mesmo assim, são US$ 50 mil por litro. Isso dá a dimensão do prestígio do Cheval Blanc e indica que não é pouca coisa a associação de sua magia à de um vinho da América do Sul. Precisamente da Argentina: o Cheval des Andes.
Claro que é impossível replicar o DNA de um vinho em outro, ainda mais de hemisférios e trajetórias diferentes. Afinal, a região de Bordeaux, no sudoeste da França, está ligada a essa bebida desde o Império Romano, há dois milênios, e é sua a grande bússola nos negócios do gênero em todo o mundo. Já Mendoza, o principal centro vinícola da Argentina, mal saiu das fraldas andinas para ganhar conceito como produtor de vinhos realmente bons.
No entanto, expertise e tecnologia, conjugadas a uma boa injeção de dinheiro, ajudam a aproximar o vinho argentino da mística do Château Cheval Blanc, um puro-sangue bordalês que produz preciosidades há 183 anos, nos arredores da cidadezinha de Saint-Émilion. A união começou em 1999, inspirada em outros projetos parecidos de grandes proprietários de Bordeaux com produtores do Novo Mundo. A exemplo do vinho Opus One, surgido na Califórnia da parceria, constituída em 1979, entre monsieur Le Baron Philippe de Rothschild e o produtor Robert Mondavi. Outra joint venture bem-sucedida resultou no tinto Almaviva, no Chile. Desta feita, houve um associação, em 1997, de Philippine de Rothschild (filha do barão) com a Concha y Toro.
Praga e bênção
Para conduzir o novo Cheval em boa raia foi escolhido ninguém menos que Pierre Lurton, o próprio e incensado diretor da grife em Saint-Émilion. Como se fosse pouco para um currículo valioso como uma impériale de 1947, o célebre enólogo também é diretor do Château d’Yquem, em Sauternes, produtor do mais celebrado vinho de sobremesa da história. Explique-se: ambas e lendárias propriedades bordalesas pertencem ao poderoso grupo francês LVMH, que tem em seus domínios marcas do quilate de Moët & Chandon, Veuve Clicquot, Hennessy, Louis Vuitton e Christian Dior. Desse elenco consta também a vinícola Terrazas de los Andes, em Mendoza, edificada na região de Perdriel a partir de uma bodega em estilo espanhol de 1898.
Terrazas sucedeu à Chandon argentina, que começou a elaborar espumantes na década de 1960 e hoje produz também atraentes tintos e brancos. Mas, como toda bodega que se preza, seu destino era ter o chamado “vinho ícone”, aquele que agrega pompa e circunstância à produção geral. E então surgiu Cheval des Andes, por decisão de Bernard Arnault, mandachuva da LVMH. Foi idealizado para ter o estilo clássico de um Bordeaux e longa vida em garrafa, de pelo menos dez anos.
Na realidade, a assemblage, ou seja, a mescla de uvas, é bem diferente daquela do bordalês original. Se um Cheval Blanc produzido na França combina, sobretudo, Merlot e Cabernet Franc, com frações menores de Cabernet Sauvignon, o sucessor de sotaque argentino tem sua identidade dominada pela casta Malbec. Uma ironia: logo ela que vicejou no sudoeste francês por séculos até ser praticamente dizimada pela praga filoxera nos finais do século 19, ressurgindo em Mendoza como uma bênção para os vinicultores locais.
Frutas negras
A Malbec do Cheval des Andes é cultivada em 50 hectares de vinhas antigas, algumas com mais de 80 anos, no distrito de Las Compuertas. O solo pedregoso e arenoso a 800 metros de altitude, a temperatura quase sempre ideal e o ar seco das montanhas favorecem a boa maturação das cepas. Foi o que constatou Pierre Lurton quando visitou Mendoza pela primeira vez, dizendo-se impressionado com a estrutura dos taninos encontrados nessas uvas, que poderiam garantir a estrutura e a longevidade pretendidas. No início da produção, porém, a Cabernet Sauvignon, cujo suco é o próprio sangue de Bordeaux, foi usada em maior proporção no blend do Cheval des Andes, chegando a 60% do total.
Nas mais recentes safras, porém, a Malbec tornou-se a estrela da companhia, assumindo os 60% que eram da Cabernet. Além dessa uva, também podem ser utilizadas Cabernet Franc, Merlot e Petit Verdot, em decisão de Lurton e de Hervé Birnie-Scott, enólogo-chefe da Terrazas. Cada variedade dormita cerca de 18 meses em barricas de carvalho antes da mistura que irá preencher algo como 70 mil garrafas por ano.
“Trata-se de um vinho de estilo exótico com um toque francês”, costuma dizer Lurton, destacando o que chama de “fantástica complementaridade” entre as equipes de cada Cheval. A primeira safra, de 1999, tinha bastante frescor, segundo o enólogo gaulês, indicando que as melhores para beber agora são as de 2007 e 2008. No momento, a LVMH vende no Brasil a safra 2010, com Malbec, Cabernet Franc e Petit Verdot, vinho que apresenta aroma de frutas negras maduras e cacau, também presentes no gosto equilibrado pelos taninos e pela acidez precisos, determinando um conjunto agradável e persistente.
Cavalos de polo
A vinícola recebe os visitantes e convidados em um elegante casarão bem ao lado da bodega, a Casa Terrazas, com seis suítes e boa comida a cargo de chefs especialmente contratados. Da recepção com espumantes aos almoços e jantares, percebe-se a preocupação em satisfazer a quem está ali para descobrir por que um gigante como o grupo LVMH resolveu ir quase até o fim do mundo para fazer vinhos.
Uma visita à bodega, com degustação comentada por algum dos enólogos, está no roteiro obrigatório de quem vai até lá. Além do vinho icônico, são apresentados os demais produtos Terrazas, em linhas diversas, com destaque para o branco com Torrontés, grande sucesso enológico produzido com uma uva até recentemente pouco valorizada. Depois, para grupos de quatro a dez pessoas, há aulas de culinária com receitas típicas argentinas, em que despontam as inevitáveis empanadas. Outra atividade natural é a visita aos vinhedos, com explicações sobre o clima local e os tipos de solo (em um deles, um corte profundo na terra permite ver as camadas de escoamento da água – uvas viníferas são pouco chegadas a excesso de umidade).
Aproveitando a paixão dos argentinos pelo polo e havendo a óbvia ligação com o nome Cheval, a vinícola mantém um lindo campo para a prática desse esporte em meio aos vinhedos e sob a vista espetacular da pré-cordilheira dos Andes. Ali, os convidados são recebidos em um wine loft com espumantes, petiscos variados e Cheval des Andes, naturalmente. Nos meses mais quentes é possível assistir a uma partida e, se o visitante levar jeito para a montaria, pode até tentar dar umas tacadas. Ou apenas trotar nos belos animais da propriedade.