Viva Jackson do Pandeiro!

Viva Jackson do Pandeiro!

Ele só aprendeu a ler depois dos 30 anos, mas ensinou o be-a-bá da música nordestina urbana a várias gerações.

Por Matias José Ribeiro

Celebremos o talento
De um artista verdadeiro
Rei do ritmo popular
Imortal no cancioneiro
Vulto de Orfeu no Nordeste
É o Jackson do Pandeiro.

(Cordel de Júnior do Bode)

O estopim de tudo foi o convite que ele fez à cumade Sebastiana pra cantar e xaxar na Paraíba. O inesperado chamado se deu em pleno auditório da Rádio Jornal do Commercio, no Recife, no sábado 17 de Janeiro de 1953, diante de uma plateia de quase mil pessoas que ali compareceu para assistir à revista carnavalesca A Pisada É Essa. Sebastiana não só aceitou como veio… com “uma dança diferente”. E pulando que só uma guariba.

Ele – um negro paraibano, baixinho, bigodinho fino, que atendia pelo singular nome de Jackson do Pandeiro – subiu ao palco e não cantou, como seria de se esperar, samba ou marchas, típicos do Carnaval. Com seu pandeiro, e acompanhado de sanfona, zabumba, triângulo, e ainda por uma veterana radioatriz pernambucana, cantou foi um coco!

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Sucesso instantâneo. Consagrador. Ali começava a se revelar, para o país inteiro, uma persona completamente nova. Jackson mostrou ser não apenas um excepcional ritmista, mas também um cantor de recursos vocais sofisticados, afinadíssimo e com uma presença de palco alegre, malandra. Sua voz metalizada e um tanto anasalada chegou com uma sonoridade impactante.

Seu jeito de cantar era inédito – na forma de dividir, na pronúncia, na articulação das palavras, na emissão vocal que explorava ritmicamente as palavras. E mais: ele sempre cantava relacionando‑se de modo direto com o acompanhamento, fundindo‑se a este, sugerindo assim ser um cantor que faz parte de uma orquestração, não importa se apenas um duo ou uma orquestra completa.

Por tudo isso diriam, mais tarde, que Jackson foi “uma espécie de João Gilberto avant la lettre” – por sua capacidade de quebrar uma frase melódica, com constantes deslocamentos de acentuação, às vezes adiantando, às vezes atrasando. Fazendo da improvisação uma de suas características mais marcantes. Há, aliás, quem afirme que o próprio João Gilberto aprendeu a dividir com ele. Recentemente, concluiriam ainda que Jackson foi precursor do rap.

Adorava bangue‑bangue.
Era seu filme preferido.
Imitava algumas cenas
Por ser muito extrovertido.
Denominou‑se de Jack
Eis aí seu apelido.

(Cordel de Pádua Gomes Gorrión)

Não foi nada fácil a caminhada de Jackson do Pandeiro até o “momento mágico” de “Sebastiana” (quando tinha já 33 anos de idade). Ele nasceu em 31 de agosto de 1919, no pequeno município paraibano de Alagoa Grande, na microrregião do Brejo Paraibano, no intermédio entre o litoral e o sertão, na encosta da serra da Borborema, a pouco mais de 100 quilômetros da capital, João Pessoa.

Primeiro filho do oleiro José Gomes e da cantora de coco Flora Mourão, o menino José Gomes Filho cresceu na miséria quase absoluta. Vivia solto na rua e no mato, sem frequentar qualquer escola. Da mãe, à época uma das mais respeitadas coquistas da região, recebeu as primeiras noções de ritmo. Muito requisitada para cantar em festas, Flora tocava o ganzá, acompanhada de um zabumbeiro. O filho assistiu por anos e um dia resolveu pegar no zabumba. Tempos depois, passou a ser ele o acompanhante de Flora Mourão, em especial quando a família se mudou para Campina Grande, após a morte do pai.

O menino tinha então 11 anos. Quando não estava trabalhando, brincava de artista. Adotou como ídolo Jack Perrin – ator americano de segunda grandeza que começou carreira ainda no tempo do cinema mudo, principalmente em filmes de faroeste. A maneira do caubói de andar e cavalgar o fascinava. É o próprio Jackson quem conta: “Comprei um chapelão de palha, um revólver de madeira, e a gente brincava… Depois fui crescendo, tinha que ajudar minha mãe a dar de comer à moçada e parei com a brincadeira. Mas fiquei com o nome Jack. Só Jack. Quando comecei a tocar pandeiro acabei sendo Jack do Pandeiro”.

A mudança para “Jackson” só se deu muitos anos depois, no final da década de 1940, ele já pandeirista da orquestra Jazz Paraguary, na Rádio Jornal do Commercio no Recife. Dá-se o crédito para o rebatismo ao locutor‑chefe da emissora, Ernani Séve.


Cantando meu forró vem à lembrança
O meu tempo de criança que me faz chorar.
Ó linda flor, linda morena
Campina Grande, minha Borborema.
(…) Aprendi tocar pandeiro nos forrós de lá.

(“Forró em Campina”, música de Jackson do Pandeiro)

Jackson começou marcando o ritmo no zabumba com a mãe e logo passou a tocar ganzá, bombo, gaita, tamborim, reco-reco e até bateria. Mas queria mesmo é dominar o pandeiro, instrumento que o hipnotizava. “Eu não queria ser quinto ou quarto baterista”, contou. “Foi por causa do suingue, um fox meio ligeiro que tinha antigamente, que eu deixei de tocar bateria. Era um baterista que só gostava de tocar a nossa música. Então abandonei e fui treinar um pouquinho de pandeiro. E sempre cantando. Cantando samba, cantando marcha de arrasta‑pé, cantando coco, essa coisa toda.”

Sua evolução no instrumento foi rápida. Por volta de 1940 mudou-se para João Pessoa. Em 1946 formou com Rosil Cavalcanti, que conhecia de Campina Grande, a dupla humorística Café com Leite, que se tornaria conhecida com suas emboladas e tiradas cômicas que provocava gargalhadas no auditório. O curioso é que subvertiam a ordem natural: Jackson, negro, pintava‑se de branco (“leite”) e tocava violão; Rosil, de pele muito branca, pintava‑se de preto (“café”) e tocava pandeiro. Mas o que é bom dura pouco: em três meses terminou a promissora carreira da dupla.

Jackson ficou ainda algum tempo mais em João Pessoa e em 1948 bandeou‑se para o Recife, para integrar o cast da Rádio Jornal do Commercio. Começou na emissora como intérprete, cantando sambas, em especial os do repertório de Jorge Veiga. Chegou a ser chamado, em reportagem do Jornal do Commercio, “o maior cantor de sambas ritmados do norte do país”.

O coco, porém, estava em suas veias, e por causa disso é que a direção da rádio pediu que deixasse de lado os temas de Carnaval para sua apresentação em A Pisada É Essa.

E foi com trinta e cinco anos
Que Jackson teve gravado
O coco Sebastiana
Por Rosil elaborado
E Forró em Limoeiro
Um rojão apimentado

(Cordel de Feliciano Júnior)

O sucesso valeu a Jackson a gravação de seu primeiro disco: um 78 rotações com o rojão “Forró em Limoeiro”, de Edgar Ferreira, e o coco “Sebastiana”, de Rosil Cavalcanti.
Os executivos da gravadora Copacabana não conseguiram acreditar: o disco vendeu mais de 50 mil cópias naquele ano de 1953. Como consequência, um contrato para mais quatro discos, gravados no início de 1954 em apenas um mês, nos estúdios da Jornal do Commercio. O cardápio se revelaria antológico, com os hoje clássicos “1 x 1”, “17 na Corrente”, “Micróbio do Frevo” e “A Mulher do Aníbal”. Esses discos apresentaram Jackson do Pandeiro ao sul do Brasil. De artista regional ele rapidamente tornou-se um astro nacional, de dimensões fenomenais.

Naquele mesmo momento iniciou seu romance com Almira Castilho, que já atuava como sua parceira na nova revista A, E, I, O, U Ypsilone. Formavam uma dupla perfeita – e esfuziante. Almira foi de importância fundamental para Jackson. Passou a cuidar de negócios, orientação artística, agenda, contratos com a imprensa, guarda‑roupa. Mais do que isso, começou a alfabetizá-lo, já que até então ele mal sabia assinar o nome.

O sucesso levou Jackson a viajar para o Rio de Janeiro, onde apresentou‑se nas rádios cariocas. Foi depois também a São Paulo e Minas Gerais. Voltou ao Recife atendendo aos chamados da Rádio Jornal do Commercio, mas por pouco tempo. No início de 1955 teve uma grande briga em um clube com um rapaz que deu uma passada de mão nas pernas de Almira. Acabou espancado. O episódio fez com que Jackson se mudasse em definitivo para o Rio.

Vieram os anos de ouro. Ele lançou seu primeiro long play. Começou a comandar um programa na TV Tupi, No Forró do Jackson. Foi contratado pela Rádio Nacional. Estreou no cinema com Tira a Mão Daí, o primeiro de sete filmes dos quais participaria como ator – teve seus papéis mais relevantes em Aí Vem a Alegria e Minha Sogra É da Polícia. E as músicas de sucesso começaram a se acumular: “O Canto da Ema”, “Xote de Copacabana”, “Chiclete com Banana”, “A Mulher Que Virou Homem”, “Como Tem Zé na Paraíba”, “Cantiga do Sapo”.

Em meados dos anos 1960 deu-se um período de declínio, em razão da bossa nova, do rock estrangeiro, da jovem guarda – e também por problemas de saúde (além de estar diabético, em 1968 sofreu um grave acidente automobilístico). Jackson voltou às paradas na década seguinte, já então separado de Almira e acompanhado pela nova mulher, Neuza. Vinha embalado por gravações de seu repertório por Gal Costa (“Sebastiana) e Gilberto Gil (“Chiclete com Banana” e “O Canto da Ema”) e pelas dezenas de apresentações que fez com Alceu Valença nos projetos Seis e Meia e Pixinguinha. Trabalhou intensamente em shows e gravações até que em 10 de Julho de 1982 um coma diabético seguido de embolia pulmonar e cerebral o levou à morte, em Brasília, aos 62 anos, uma semana depois de sua última apresentação pública.

Hoje ninguém mais questiona o valor de Jackson do Pandeiro. Ele é reverenciado como um dos grandes, um dos maiores de toda a história da música brasileira. Sua influência há muito se espalha. Está impregnada na obra de artistas de épocas e estéticas as mais diversas.

Até o Rei do Baião
Que o Nordeste propaga
Reconhece seu talento,
Seu sucesso e sua saga
E logo foi aplaudido
Pelo Rei Luiz Gonzaga

(Cordel de Pádua Gomes Gorrión)

Quem é que disse que um jogo não pode ser um a um? Pode sim. Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro são ambos reis. Estão empatados. Gonzaga foi coroado Rei do Baião no final dos anos 1940, depois de lançar “Baião” e “Asa Branca”. Jackson recebeu o cetro de Rei do Ritmo em 1953, logo depois do estrondoso sucesso de “Sebastiana” e “Forró em Limoeiro”.

E, fato inconteste, Jackson e Gonzaga foram (são!) os grandes mestres da música nordestina. Para Gilberto Gil, a diferença fundamental entre ambos é que Gonzaga, gibão de couro, chapéu de cangaceiro, tinha um traço mais rural, cantava mais o sertão. Jackson, vestido sempre como um homem comum e com o indefectível chapeuzinho de abas curtas, representava o Nordeste urbano, mais contemporâneo e moderno.
Quanto à popularidade e à exposição sempre maiores que teve Gonzaga, diz Alceu Valença: “O Jackson era ingênuo, menos articulado. Não soube fazer os contatos que o mestre Lua fez. Costumo dizer que Gonzagão é o Pelé da música e Jackson, o Garrincha.”

Hoje, Jackson e Gonzaga estão sempre juntos, a poucos metros um do outro, representados por estátuas de bronze em tamanho real erguidas no centro de Campina Grande e inauguradas em 2003.

Porque cantar um coco
como ele canta
eu nunca, até hoje,
ouvi ninguém cantar

(Roberto Torres, letra para “Viva Jackson do Pandeiro”, música de Hermeto Pascoal)

Jackson do Pandeiro é cada vez mais lembrado e celebrado por sua importância. Papel fundamental na redescoberta de seu legado tem o livro Jackson do Pandeiro – O Rei do Ritmo (Editora 34, 2001), dos paraibanos Fernando Moura e Antônio Vicente, a primeira biografia do artista. Outro livro que merece leitura é A Musicalidade de Jackson do Pandeiro, de Inaldo Soares (edição do autor, 2011).

De todo modo, o fato é que pouco se ouve Jackson – apesar de ele ter gravado mais de 400 músicas. Vale a pena garimpar lojas e internet para encontrar discos que há ainda no mercado – como o clássico Sua Majestade o Rei do Ritmo, de 1960, ou Jackson do Pandeiro Revisto e Sampleado, de 1999, no qual nomes conhecidos cantam o repertório jacksoniano, de Os Paralamas do Sucesso a Chico Buarque, de Gal Costa a Lenine.

Há ainda Jackson do Pandeiro para ver e ouvir. Difícil de se encontrar, mas compensador, é o DVD Jackson do Pandeiro ‑ MPB Especial, com a íntegra do programa (hoje chamado Ensaio) gravado pela TV Cultura em 1972. Há também vários vídeos no YouTube. Mas o melhor, no telão e na telinha, está por vir. Em 2016 deverá ser lançado o documentário Jacksons e Imagens (título ainda provisório), produzido pelos paraibanos Marcus Vilar e Cacá Teixeira. Segundo eles, a proposta é homenagear e reviver a memória de Jackson. Será, acreditam, um start para as comemorações do centenário de nascimento do artista, em 2019.

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