O instrumento mais simbólico do jazz teve uma noite histórica no BMW Jazz Festival em São Paulo.
Por Zuza Homem de Mello
Não é de hoje que o imperador dos instrumentos de jazz é o saxofone tenor. Nem sempre foi assim. Nessa monarquia já reinaram o trompete de Louis Armstrong e o clarinete de Benny Goodman. Desde o Bebop, nos anos 40, o saxofone impera como o sinuoso símbolo gráfico e visual do jazz. Foi somente a partir de Coleman Hawkins (1904 – 1969), o músico que mais bem soube descobrir suas reais possibilidades sonoras, que o saxofone se inseriu na história da música. Tinha sido concebido em 1840 por um belga, Adolphe Sax, professor e construtor de instrumentos, quando ligou uma boquilha com palheta simples de cana – a mesma do clarinete – a um corpo encurvado de latão que, terminando em campana, iria produzir uma sonoridademais robusta e apropriada para bandas militares.
Nesse corpo metálico Sax armou as chaves, como as da flauta ou do clarinete, que abrem e fecham os orifícios por meio da digitação do executante. Nas suas descobertas espontâneas, como autodidatas, os músicos de jazz de New Orleans, em contato com as bandas militares francesas, elevaram o saxofone, de um acessório quase desprezível nas orquestras sinfônicas, à linha de frente no grupo de sopro.
Da família completa de instrumentos patenteados por Adolphe Sax em Paris, num total de catorze, três ganharam a predileção dos músicos: do mais agudo ao mais grave, o sax alto, o sax tenor e o sax barítono. Na América, seriam esses que iriam compor os naipes de saxofones consagrados nas orquestras da Era do Swing, conhecidas comobig bands.
Beans e Prez
Antes de Hawkins ninguém sabia explorar a sonoridade robusta e dominante do saxofone, que assim era francamente mal aproveitado nas raras composições clássicas que ousavam incluí-lo na seção de palhetas. Depois de atuar de 1922 a 1934 na pioneira big band do arranjador Fletcher Henderson, Hawkins foi convidado por um empresário inglês a viajar para a Europa. Lá permaneceu por cinco anos, atuando com tal excelência e demonstrando na prática como o instrumento podia ser mais bem executado, que legitimou a contemporaneidade do saxofone tenor.
Com seu sopro vigoroso e agressivo, Hawkins – que ouvi e conheci pessoalmente, em meados dos anos 50, quando ele tocava no Metropole Café (um bar próximo a Times Square onde atuavam veteranos do jazz) –estabeleceu assim uma sonoridade ao instrumento que talvez nem o próprio Adolphe Sax imaginaria conseguir.
A partir da sonoridade corpulenta e da impressionante vitalidade de Hawkins, que tinha o apelido de Beans, fixou-se então, entre os músicos de jazz, um dos estilos predominantes do sax tenor que foi, e ainda é, o padrão dos descendentes em linha direta desse patriarca no jazz. Entre eles Ben Webster, Don Byas, Charlie Ventura, Chu Berry, Dexter Gordon, Sonny Rollins, Illinois Jacquet e até Pixinguinha – quando deixou de tocar flauta.
O outro estilo, numa linha radicalmente oposta, a de sonoridade leve, delicada e quase isenta de vibrato, foi instituído por um músico à frente de seu tempo, Lester Young (1909 – 1959), o mais original astro da big band do pianista Count Basie nos anos 30 e 40. Lester Young, um sujeito peculiar no seu comportamento e nomeado na hierarquia como The President (ou Prez), foi um saxofonista que influenciou até músicos de outros instrumentos, ao estabelecer os preceitos básicos da mudança do hot jazz para o cool jazz. Não me esqueço da noite em que ouvi Prez, menos de dois anos antes de sua morte, no velho Birdland da Broadway, acima da rua 51, bem em frente ao apartamento onde ele morava. É um de meus heróis.
Adorado por Charlie Parker e também por Dexter Gordon, Lester Young teve entre seus acólitos o mesmo Sonny Rollins, além de Stan Getz, Gerry Mulligan, Zoot Sims, Al Cohn, Gene Ammons, Sony Stitt, Lee Konitz, Art Pepper, John Coltrane (o tenorista mais cortejado nesses anos) e até Zé Bodega, que tocava na Orquestra Tabajara de seu irmão, Severino Araújo, e é considerado o grande sax tenor brasileiro de todos os tempos.
A preferência pelo sax tenor tem razões técnicas: sua ampla extensão permite que se aproxime do sax alto na região mais aguda e do sax barítono na mais grave, assumindo assim uma posição equivalente à do violoncelo numa orquestra. O mesmo acontece quando está no centro da roda, isto é, como solista de um conjunto menor. O mais emblemático dos grupos no jazz contemporâneo é basicamente um quarteto formado por saxofone, piano, baixo e bateria, eventualmente ampliado para quinteto com a adição do trompete.
Um trio, um quarteto e um quinteto foram as formações dos grupos liderados por três magos do saxofone tenor vindos ao Brasil para o BMW Jazz Festival, realizado no Auditório Ibirapuera no mês de junho. Como membro da curadoria, realizei um desejo antigo ao reunir expoentes que emergiram em décadas distintas, numa noite inesquecível e inédita mesmo nos Estados Unidos: Wayne Shorter, o grande nome dos anos 60 como saxofonista e compositor; Billy Harper, talvez o mais eminente saxofonista da década de 70; e Joshua Redman, o mais brilhante de sua geração.
Gênios do presente
Não deixa de ser penoso constatar que apenas uma parcela do talento do saxofonista e compositor Billy Harper, que abriu a noite com seu quinteto, tem sido devidamente reconhecida pelas gravadoras. Sua apresentação no festival foi por isso uma grata surpresa com composições interessantíssimas aludindo ao Oriente e à África com pitadas de blues. Depois de nove discos na década de 70, passou os dez anos seguintes sem um sequer, embora reconhecido como dos mais notáveis músicos de sua geração. “Ele canta com seu saxofone”, descreveu-o o arranjador Gil Evans, que convidou Harper para sua orquestra em 1967. Depois de atuar com Art Blakey, Max Roach e na big band de Thad Jones / Mel Lewis, assumiu seu próprio grupo em 1973, indo à Europa, onde obteve o devido reconhecimento. Se no início o estilo lembrava Sonny Rollins e John Coltrane, a virilidade e elegância de Billy Harper, atualmente com 68 anos, ficaram cada vez mais evidentes quando passou a gravar seus temas como em Blueprints of Jazz, CD de 2008.
Da safra que se projetou na década de 90, Joshua Redman, o segundo a se apresentar, já conquistara os jovens durante o workshop que deu à tarde. Comunicativo ao extremo, encantou a plateia com sua descontração musical com os dois estonteantes músicos com quem toca há alguns anos, o baterista Gregory Hutchinson e o baixista Rueben Rogers. Aos 22 anos deixou o júri de queixo caído em sua vitoriosa participação na prestigiosa Competição Thelonious Monk, em Washington. Para Gary Giddins, um dos jurados, nenhum saxofonista assimilou melhor o corpo e a alma de John Coltrane do que Joshua Redman. Uma exibição sua é um verdadeiro compêndio dos infinitos caminhos que o saxofone pode proporcionar como o imperador dos instrumentos de sopro no jazz.
Tanto Billy Harper como Joshua Redman nunca esconderam a importância de John Coltrane na sua formação, o mesmo podendo-se dizer do mais velho dos três, o consagrado Wayne Shorter, que, com seu requintado quarteto, fechou a noite com uma série de três longas composições construídas como nuvens sonoras que se desenrolam lentamente para que sua intuição seja iluminada como um raio de sol, sob a forma de frases musicais ou apenas algumas notas, para compor peças verdadeiramente estratosféricas. Com ele, nessa criação conjunta, o pianista Danilo Perez, o baixista John Patitucci e a baterista Terri Line Carrigton substituindo Brian Blade, o baterista do quarteto que toca junto desde 2001.
A carreira de Wayne Shorter iniciou-se como diretor dos Messengers de Art Blakey entre 1959 e 1963, quando incursionou na área de composição, o que o levaria a uma posição fulgurante no jazz. Como membro do célebre quinteto de Miles Davis em Bitches Brew, teve um período consagrador de 1964 a 1970 como saxofonista tenor e soprano, além de ampliar sua excepcional produção como compositor. Juntou-se depois ao tecladista Joe Zawinul para formar o Weather Report (1970-85), que, com a entrada do baixista Jaco Pastorius, se tornou o mais inovador grupo de fusion da historia. Foi quando Wayne se aproximou de Milton Nascimento para a gravação de Native Dancer, estabelecendo nesse disco seminal a equivalência entre o jazz de um e a música sem fronteiras do outro.
O significado desse histórico e inédito encontro de Billy Harper, Joshua Redman e Wayne Shorter ultrapassou os limites de um saxophone summit. Cada um deles projetou um veio diferente em suas composições, apontando o devir da forma musical do jazz no futuro. Sem se constituir num tributo explícito, representou a confluência de três saxofonistas exponenciais em torno de John Coltrane, um ícone que nunca esteve no Brasil, mas cuja presença foi o pano de fundo desse espetáculo memorável.