Há 100 anos nascia Grande Otelo – pequeno no tamanho, mas graúdo no nome e na arte
Por José Eduardo Mendonça
“Todo ator é um sentimental. Do contrário não seria ator. A gente tem de ser um doido, um sentimental, um idealista. Se não for assim, não poderá ser um bom ator.”
Ele nasceu pequeno, em 1915 (embora alguns biógrafos apontem 1917). Mas depois do picadeiro ficou enorme, de cima de seu metro e meio. Aprendeu a cantar ainda bem criança nas ruas de Uberlândia, Minas Gerais, onde nasceu, com a proprietária do Hotel do Comércio, que se valia do menino para ajudá-la a receber os viajantes. Com o dinheiro, o moleque comprava guloseimas e a revista O Tico-Tico–.
Decidiu ser artista aos 7 anos, depois de assistir a O Garoto (1921), de Charles Chaplin. Tanto que, aos 8, foi bater na porta do circo Serrano, de passagem por Uberabinha (como então ainda se referiam a sua cidade natal). “Eu era Bastiãozinho, com um vestido comprido e com um travesseiro no bumbum e rebolando de braços com o palhaço”, contava. “Aí todo mundo riu, todo mundo achou graça.”
Nunca mais pararam de achar graça em Sebastião Bernardes de Sousa Prata. Ou de chorar. Sua carreira poderia ser um vade-mécum do ofício de atuar. Com uma incomparável latitude de representar, Otelo participou de quase 120 filmes (em grande parte, comédias), um punhado de telenovelas da Globo, humorísticos de TV, inúmeros teatros de revista, além de fazer fama como compositor e letrista – é autor de “Praça Onze”, quase um hino popular em homenagem ao Rio antigo, em parceria com Herivelto Martins. Espalhou-se por todo canto, o tempo todo.
Talvez nenhum outro ator brasileiro tenha contracenado com um elenco nacional tão extenso, que atravessou gerações e incluiu Carmen Miranda, Dalva de Oliveira, Jece Valadão, José Lewgoy, Angela Maria, Zé Kéti, Paulo José, Dina Sfat, Hugo Carvana, Jardel Filho, Joana Fomm, Betty Faria, Odete Lara, Bibi Ferreira e Paulo Autran. E, claro, com Oscarito, com o qual trabalhou em 11 filmes, incluindo o extraordinário Carnaval no Fogo, chanchada de 1949, dirigida por Watson Macedo.
Um mineirinho na ópera
Otelo foi uma daquelas pessoas únicas que, bafejadas pela adversidade constante, parecem ter feito dela, à custa de sofrimento e de uma intensidade passional de viver, uma rota tortuosa de triunfo. O pai morreu esfaqueado e a mãe era alcoólatra. Quando Otelo já estava consagrado, sua mulher, depressiva, suicidou-se após matar seu filho e enteado do ator, uma criança de 6 anos. Naquele momento, Otelo filmava, no papel de Julieta, a antológica cena do balcão com Oscarito, o Romeu, em Carnaval no Fogo. Veio a saber da tragédia pouco depois. Ele mesmo um cachaceiro de carteirinha, faltava a ensaios e espetáculos, desaparecendo por dias em porres de juntar criança.
Bastiãozinho, ou Pratinha, como era conhecido em Minas, foi desviado de uma provável vida em bucólico anonimato pela intervenção de Abigail Parecis. A jovem atriz paulista encontrava-se em Uberlândia com a mãe, Isabel, e o padrasto, João Manuel Gonçalves, diretores de uma trupe de nome pomposo, a Companhia de Comédia e Variedades Sarah Bernhardt. Os visitantes viram o garoto se apresentar na porta do hotel e o levaram a fazer um papel para lá de inverossímil: o do filho de um alemão.
A família resolveu incorporar a ela o pequeno e momentâneo teutônico negro, talvez caso único na história teatral, e levá-lo para São Paulo. A mãe de Otelo, dona Maria Abadia, no começo negou. Quando o menino disse que morreria de desgosto caso não fosse, conta o biógrafo Sérgio Cabral, ela concordou – e lá se foi Bastiãozinho para a metrópole, adotado, com papel assinado e tudo. Chegou a São Paulo em 1924 ou 1925. E começou de imediato uma formação que ajudaria a definir sua vida e lhe daria o nome artístico com o qual se consagrou.
O fato aconteceu na Ópera Lírica Nacional, subsidiada pelo presidente (como na época se chamava o governador) de São Paulo Carlos de Campos. Compositor medíocre, embora mecenas importante, Campos, que ensinava Abigail a cantar, resolveu testar a voz do garoto. Gostou do que ouviu. Previu que um dia, quando crescesse, o menino iria entoar Othelo, o fabuloso drama lírico de Verdi, baseado na peça homônima de Shakespeare ambientada em Veneza. “Seria um physique du rôle autêntico: negro, grande e tal”, relembrou o ator décadas depois. De fato, Othelo, o de Shakespeare, era um mouro enorme, de tez escura. Mas Otelo, o mineirinho, permaneceu nanico. Mesmo assim, o apelido pegou.
Famoso, mas sem dinheiro
Abigail resolveu prosseguir seus estudos em Milão, Itália. Otelo, triste com sua ausência, deu de fugir de casa. Tornou-se tão useiro e vezeiro na arte de desaparecer que a família, primeiro aflita e afinal resignada, decidiu deixá-lo aos cuidados do Juizado de Menores – em cuja porta bateu dona Eugênia, mulher do influente político paulistano Antonio de Queiroz, abastado morador de um palacete na hoje rua Dona Veridiana, no bairro de Santa Cecília. Ela buscava um ajudante na cozinha. E não resistiu ao garoto que, aos 10 anos, cantava, dançava e fazia graça. Eugênia lhe daria na adolescência quatro conselhos que o rapaz seguiu à risca: “Use a educação que você sempre recebeu, tome Phimatosan para garantir os pulmões, passe alvaiade e álcool debaixo do braço, que é formidável para tirar o cheiro do suor, e tome limonada com bicarbonato para curar o pileque”.
Entre um lar e outro, Sebastião estudou no Grupo Escolar do Arouche, na Escola Modelo Caetano de Campos e no Liceu Coração de Jesus. Saiu muito sabido e chegou a ouvir: “Quando crescer, você vai ser um moleque pernóstico”. O vaticínio não poderia estar mais longe da verdade. Grande Otelo só trajou smoking no Cassino da Urca, onde atuou na década de 1940. Seu ambiente era o pé-sujo mais próximo. Aos 17 anos, pediu licença a seu tutor para ingressar no teatro. Seu sonho era pertencer à Companhia Jardel Jércolis. O empresário teatral que dava nome ao grupo – pai do ator Jardel Filho – achou que o rapaz deveria adotar profissionalmente o apelido de Grande Otelo. Antes de ingressar na trupe, o inquieto jovem teve uma passagem pela histórica Companhia Negra de Revistas, cujo maestro era Pixinguinha. Em um dos espetáculos, Mário de Andrade encontrava-se atento na plateia.
Era assim o cidadão brasileiro para Grande Otelo: preto. “O Macunaíma que está aí ficou branco, virou branco, segundo o Mário de Andrade, e realmente um cidadão brasileiro quando bota um smoking, bota uma casaca, vira uma outra pessoa. Mas todo brasileiro no fundo é preto.”
Foi em Macunaíma, filme de 1969, de Joaquim Pedro de Andrade, que Otelo se consagrou um ator “sério”, como se já não o fosse. Já havia trabalhado 12 anos antes em Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, obra precursora do Cinema Novo, mas a repercussão foi modesta. Fizera, também, outro filme “sério”, em 1962, Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias, grande sucesso de bilheteria – mas este não era Cinema Novo. O ator se refereria a Macunaíma como “o maior atraso” de sua carreira, explicando ao mesmo Nelson: “Vocês todos, diretores, acharam que tinham de fazer alguma coisa comigo que fosse superior. Daí fiquei ao sabor do vento. Foi bom do ponto de vista intelectual, do ponto de vista da crítica, da fama, mas não adiantou para pagar supermercado”.
Samba em Berlim
Com uma certa dose de razão, Otelo tinha críticas contundentes a fazer a essa nova forma de filmar pretensiosa, inintelígivel para a maioria do público, bastante diferente da fieira dos retumbantes sucessos populares dos quais participou na Companhia Atlântida, nas décadas de 1940 e 1950: “Formou-se no Brasil, na minha opinião, assim uma espécie de círculo fechado com relação ao cinema brasileiro. E esse círculo fechado é da opinião que só eles sabem fazer cinema. Eles impõem ao povo brasileiro o cinema que eles querem”. Ainda assim, veio a atuar em Os Herdeiros (1969) e Quilombo (1984, ambos de Cacá Diegues), Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (Hector Babenco, 1977), O Homem do Pau Brasil (1982), do mesmo Joaquim Pedro. E até mesmo no dito Cinema Marginal: A Família do Barulho (de Júlio Bressane, 1970) e Nem Tudo É Verdade, de Rogério Sganzerla (1986).
Esta última obra reconta, em tom ficcional, a passagem do jovem gênio Orson Welles pelo Brasil, em 1942 (um ano depois de ter dirigido Cidadão Kane, na RKO). O cineasta aqui aportou como embaixador da boa vontade, apontado por Nelson Rockefeller, coordenador de assuntos interamericanos do governo dos Estados Unidos e sócio da RKO – uma relação para lá de promíscua. Depois de meses de incansável gandaia e intermináveis bebedeiras, muitas delas tendo a tiracolo um tresloucado Otelo, o americano foi embora sem terminar o documentário. É o mineiro de Uberabinha quem conta: “Orson, ao me conhecer, tomou de simpatia por mim e praticamente se esqueceu de que tinha uma obrigação para com o Departamento de Estado americano. Então, desandou a me filmar de todo jeito e eu conversava, batia papo com ele, bebia cachaça com ele. Foi ele que inventou o ‘samba em Berlim’, que era cachaça misturada com Cola-Cola”.
Se o samba em Berlim era doce, foi amarga a experiência com o diretor alemão Werner Herzog em Fitzcarraldo (1982), um delírio tropical realizado na Amazônia peruana. Otelo tinha duas páginas para decorar em inglês, língua que não dominava. Resolveu fazer a fala em espanhol, para desagrado da irascível estrela Klaus Kinski, “que jantava sozinho, sempre de cara fechada”. Foi a única cena aplaudida durante a exibição do filme em sua estreia na Alemanha.
Grande Otelo morreu aos 78 anos, de um infarto fulminante, em 23 de novembro de 1993, ao descer da escada do avião no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. Estava a caminho de Nantes, onde seria homenageado no Festival dos Três Continentes. Ironicamente, terminara dias antes seu último trabalho – a novela Renascer.