Enfim, 38 anos após a morte da grande cantora, vêm à luz os seus inéditos e íntimos cadernos e guardados.
Por Valentina Nunes
Quem teve o prazer de ouvir Maysa no auge da carreira, na virada dos anos 1950 para os 60, não se esquece do fascínio provocado por sua voz grave e aveludada ao entoar composições próprias em interpretações carregadas de teatralidade. Era como se falasse do fundo da alma. Impressionado ao vê-la e ouvi-la cantar, o poeta Manuel Bandeira escreveu que era impossível não notar seus “olhos não pacíficos” e a boca amarga, contorcendo-se “feito a ostra viva em que se pinga a gota de limão”.
Jamais passaria incólume o impacto artístico – e existencial – causado por Maysa tão logo despontou no cenário musical, quando ainda era a jovem senhora André Matarazzo, da alta sociedade paulista, e não tinha mais de 20 anos. O público a adorava. Mais: poetas, escritores, artistas e críticos também se deixaram inebriar pela instigante contradição de sentimentos provocados pela cantora.
Nos palcos e na TV, Maysa primeiro encantou pela beleza e elegância. Mas também pelas letras coloquiais de suas músicas, sem rebuscamentos, facilitando a identificação com os sentimentos comuns a toda gente. Sucessos como “Ouça” e “Meu Mundo Caiu” são exemplos do que o samba-canção tem de melhor. Maysa expressava como ninguém as dores de amor de uma época dada a arroubos sentimentais, ainda sob influência do bolero – embora com ela tudo já estivesse se abrasileirando.
Dali a alguns anos, a cantora enveredaria pela bossa nova. Trocava, assim, a dor de cotovelo pelas canções solares e sussurradas. Foi a primeira a divulgar o novo estilo musical no exterior. Isso não implicaria abandonar o samba-canção. Um fato notável. Afinal, os dois gêneros eram esteticamente opostos. Mas não para Maysa.
A paixão pela cantora, de qualquer maneira, não durou muito tempo. Depois de arrebatar todos os prêmios e tornar-se a artista brasileira mais bem paga, Maysa viu sua carreira declinar. Engordou. Emagreceu. Tornou a engordar. Dizia que, quando fazia regime, perdia litros – e não quilos. O mesmo desnudamento emocional que tanto atraíra o público agora o afastava. A dor que Maysa trazia à tona já não era bonita de se ver, ouvir e reconhecer. Recém-separada e desta vez machucada de verdade, trocava, em muitos momentos, o glamour do passado por um despojamento exagerado. Displicente até. A ponto de se apresentar descabelada, descalça e alcoolizada. Maysa passou a colecionar escândalos. Tornou-se chamariz para a mídia sensacionalista.
Desgostos e descontentamentos
Esta é, em geral, a lembrança deixada por Maysa, embora esforços tenham sido feitos para dar mais destaque a seu papel artístico que à sua vida pessoal. Em especial, nos resgates posteriores à sua morte, em 1977, aos 40 anos de idade, num acidente de carro na ponte Rio-Niterói, quando viajava sozinha rumo a Maricá, litoral fluminense. Maysa estava afastada do cenário da música popular já havia alguns anos. Dedicava-se à pintura e à poesia, em uma espécie de retiro voluntário em sua casa de praia, em Maricá. Na TV, era mais fácil vê-la atuando como atriz do que cantando. Na telenovela O Cafona, da Rede Globo, escrita por Bráulio Pedroso em 1971, ela viveu Simone, uma alcoólatra. Seu alter ego? Seja como for, um vácuo sobre a arte musical de Maysa se estendeu por um longo tempo. Até que as novas gerações fossem surpreendidas por uma recente onda de biografias, relançamentos de discos e até uma minissérie de TV inteiramente sobre ela.
A importância musical de Maysa foi devidamente ressaltada e reconhecida – e até mais facilmente aceita hoje, porque livre dos valores conservadores que a condenaram no passado. Ainda assim não houve jeito de evitar: seus amores lancinantes e excessos etílicos continuaram a ser bem mais lembrados do que sua arte.
De tudo o que se falou sobre Maysa, instigante é saber que há ainda um prato, ou melhor, um baú cheio de novidades a se descobrir sobre ela. Ele resulta de um hábito pouco conhecido da cantora: o de escrever e arquivar sua vida e seus sentimentos.
Maysa manteve essa prática por anos a fio, desde o início da adolescência. Escrevia e desenhava de uma maneira contumaz e compulsiva. Eram poemas, letras de música, versos soltos, diários, cartas, pensamentos avulsos e o que mais lhe passasse pela cabeça. O mais impressionante: Maysa tratava de conservar tudo isso. Por mais descartável que fossem os textos e o tipo de papel. E aqui vale notar que ela escreveu não só em cadernos, mas também em guardanapos, envelopes, roteiros, folders de serviços de hotel e até em sacos de enjoo de avião. Em um deles deixou registrados alguns versos, provavelmente durante uma viagem. Ainda mais curioso é descobrir que, em uma prosaica lista de compras, a cantora acrescentou um pensamento confessional.
O material foi reunido depois da morte de Maysa pelo seu filho único, o diretor de cinema e televisão Jayme Monjardim, em um grande baú. Nesse conjunto pulsa um universo rico em reflexões, repleto de pistas sobre a vida e os sentimentos da cantora. Percorrendo os olhos pelos textos e desenhos, é possível perceber certa ironia e mordacidade latentes, o gosto musical em formação e, principalmente, a facilidade que Maysa tinha de lidar com o que na época era inconciliável. Fossem estilos musicais ou concepções de vida. Foi essa maneira de absorver as contradições que a tornou particularmente interessante – embora à custa de desgostos e descontentamentos.
Silvio Caldas e Elizeth, mestres
O baú tem alguns cadernos de adolescente. Neles, a jovem Maysa compôs o que, reservadas as proporções, pode ser considerado o reflexo de sua “literatura de formação”. Ali está registrada a criação de “Ouça” e “Adeus”. Esta última foi composta quando a futura cantora tinha apenas 12 anos. Há também uma miscelânea de colagens, textos e desenhos que misturam realidade e fantasia.
Maysa recortava jornais e revistas e os colava em cadernos. Depois, escrevia sobre as colagens, inserindo-se como uma personagem participante das cenas que criava. Em sua imaginação, convivia com os cantores do rádio e com atores e atrizes de Hollywood, encarnava uma crítica de moda, vivia as letras dos boleros e das baladas que copiava à exaustão. Também inventava contos, brincava com as palavras e desenhava uma série de autorretratos. Nesses desenhos, ela é a figura feminina vestida com sofisticação, portando joias e estolas, ao lado de carros de luxo, ao mesmo tempo que, páginas adiante, pode surgir de braços estendidos, olhando para o céu e pedindo ao espírito de Noel Rosa que simplesmente baixasse nela.
Para uma leitura interpretativa, é nesse tipo de registro fantasioso que está o embrião daquela que, muito em breve, seria a sua mais frustrante tentativa de conciliar mundos tão opostos: a de ser uma sofisticada personagem da elite econômica, ao mesmo tempo que se tornava uma bem-sucedida cantora popular.
Nas páginas desses cadernos, assim como nas de um pequeno diário em que, aos 17 anos, anotou o pedido e os preparativos de seu casamento, Maysa se preparava para ser alçada de filha da classe média alta a membro do então principal clã da elite econômica e industrial paulistana, a família Matarazzo. Deles constam os registros das noites com a boemia artística que ela precocemente conheceu dentro de casa, com os pais Alcebíades e Iná Monjardim, ou em boates que frequentava com eles. Maysa casou-se em janeiro de 1955. Tinha 18 anos. André Matarazzo, seu marido, 37.
O sonho de estar sobre palcos continuava latente, sem sair do papel. Não se pode negar que, a despeito da paixão reprimida por seu casamento, nas veias da jovem senhora continuava a pulsar forte o gosto popular. Afinal, como ela mesma gostava de repetir, seus professores de violão e canto tinham sido ninguém menos do que Silvio Caldas e Elizeth Cardoso.
A que mais gravou Tom Jobim
Mas como levar adiante projetos tão antagônicos? A cada dia Maysa descobria que pertencer à alta roda significava seguir à risca o discretíssimo papel reservado às mulheres casadas, de acordo com as normas da conservadora sociedade brasileira dos anos 1950. Em termos práticos, estaria destinada a receber os convidados do marido, acompanhá-lo nos eventos sociais e a “jogar cartas e não fazer nada”, como desabafou em seus textos. A música, a esse ritmo, nunca sairia de seus cadernos.
Foi graças a uma manobra do pai que Maysa foi estrategicamente convocada a cantar, para a boa surpresa de todos. O boêmio Alcebíades Monjardim convidara o produtor musical Roberto Côrte Real e o empresário José Scatena, dono da gravadora RGE, para uma reunião. Maysa apareceu na sala, grávida, com seus estonteantes olhos verdes. Côrte Real e Scatena ficaram siderados ao ouvi-la empostar a voz em composições românticas – próprias e alheias, em vários idiomas. Jamais poderiam imaginar tal recital. Côrte Real escreveu: “Chegamos a duvidar que pudesse existir alguém que houvesse absorvido com tanta singeleza e sinceridade os ensinamentos do cancioneiro romântico do Brasil, deixados por tantos compositores de fama, dentre eles o grande Noel, do qual Maysa, apesar de não o ter conhecido, guarda em verdadeiro relicário, isto é, na mente e no coração, todas as suas mais inspiradas páginas musicais”.
O álbum de estreia, Convite para Ouvir Maysa, foi gravado em 1956, depois de muita negociação familiar – o que incluía esperar o nascimento do filho, Jayme. Em vez do retrato da cantora, trouxe na capa a foto de três orquídeas. Além disso, teve sua renda revertida para a campanha de combate ao câncer. Tudo para dissociar a imagem da jovem esposa Matarazzo de uma futura e inaceitável carreira artística. Os oito sambas-canção eram de autoria dela, com arranjos do maestro Raphael Puglielli.
Ao romper sua união milionária, na contramão da notícia que fazia suspirar a maioria das mulheres da época – a do casamento da atriz Grace Kelly, que abandonava a carreira em Hollywood e entrava para a realeza europeia –, Maysa deixava para trás as vantagens de ser muito rica e viver entre privilégios e privilegiados. Enfim mergulhada de corpo e alma em sua carreira, entregou-se de vez às transgressões. Muitas delas regadas a abusos alcoólicos e motivadas por sua pouca paciência para as convenções sociais. Tinha início assim uma série de noitadas divertidas, trotes nos amigos, amores loucos, paixões fulminantes, uma intensa dose de solidão, tentativas de suicídio e mais dois casamentos – com o empresário espanhol Miguel Azanza e o ator brasileiro Carlos Alberto. Apesar dos desmandos do dia a dia, a cantora construiu uma considerável carreira internacional. Sempre atenta ao seu repertório, Maysa foi por um bom tempo a intérprete que mais gravou Tom Jobim.
Uma flor silvestre
Mas o que aconteceu, afinal, com sua escrita? Quando estourou nas paradas de sucesso, embora já não fosse mais uma adolescente, mas esposa e mãe, ainda assim ela voltaria algumas vezes aos cadernos. Só que, desta vez, os recortes de jornais ali colados eram reportagens falando dela própria e de seus sucessos como cantora e compositora. Uma espécie de clipping de seu início de carreira. Quando abandonou o sobrenome Matarazzo para ser simplesmente Maysa, foi vez de aquela antiga personagem de papel se tornar uma personagem da vida real. A partir daí, os cadernos de adolescente silenciaram.
A escrita seguinte foi tomada por uma grande fragmentação. Maysa trocou os cadernos por papéis avulsos, de toda ordem. São textos sem data e sem muita conexão entre eles, rasurados e com desenhos, a sugerir uma escrita urgente, instantânea e compulsiva. Alguns foram transformados em letras de músicas. Outros permaneceram como estavam. Houve, ainda, aqueles que ganharam a forma final de poemas, em geral compostos em versos livres.
Parte desses poemas está no livro Maysa, lançado em 2008 pela editora Globo, espécie de fotobiografia poética pouco divulgada, onde se encontram também reproduções dos quadros que ela pintou. Sobre a pintura de Maysa, quem fala ali é o poeta Carlos Drummond de Andrade, em trecho de crônica publicada em 1978, por ocasião de uma exposição póstuma. Escreveu o poeta: “(…) basta-me a notícia da exposição para sentir como tudo que é de Maysa chega até nós envolvido de paixão, de luta existencial, de vida em conflito com a vida”.
Na obra, os intensos versos de Maysa dividem espaço com um exclusivo poema manuscrito de Pablo Neruda dedicado a ela. A poesia da cantora surpreendeu o escritor Jorge Amado. Disse ele que, ao contrário “das gravações que guardam a magia de sua voz feita de solidão e intimidade; de busca, de encontro e de desencontro; de esperança e desespero”, em seus poemas está “a Maysa desnuda em sua verdade”. Amado completou: “Maysa fará com que todos por fim a entendam, respeitem e amem – essa que foi ‘uma flor silvestre’, única e sem igual”.