Por J.R. Duran
O irlandês Thomas Michael Hoare, o Mad Mike, foi o maior mercenário do mundo na era moderna. Aos 99 anos, mora no sul da França.
– Você pode ir, mas eu fico bem aqui, e a maior parte dos homens também.
—Repita o que você disse.
O homem que acabou de cuspir a frase, na cara do soldado que o desafiou, é um oficial. Com um gesto rápido, tira a pistola Browning 9 mm do coldre e aponta contra a cabeça do amotinado. Os dois estão na beira da estrada. E esta estrada não é qualquer uma. Fica no Congo (a atual República Democrática do Congo), no coração da África. O oficial, um homem de meia-idade, baixinho, usa um boné cor de vinho com o desenho de um ganso. Está enfrentando um motim horas antes do primeiro ataque das forças que comanda. Por fim, o soldado sob a mira da pistola desmorona – “como um balão furado”, descreveria o oficial. Minutos depois, a coluna motorizada segue em frente e consegue, dias depois, seu objetivo: a retomada de Albertville, cidade ocupada pelos guerreiros simbas.
O coronel se chama Mad Mike Hoare e está à frente do 5° Comando da ANC (Armée Nationale Congolaise). Ele conta que aquele momento foi “um divisor de águas” em sua vida. “Mostrou-me uma força e uma personalidade que eu nem imaginava, decisiva para o sucesso dos 5° Comando e das missões seguintes.”
O ano é 1964 e Hoare havia chegado ao Congo meses antes com a missão de formar um pequeno exército de mercenários. Seus soldados se tornariam indispensáveis para enfrentar um efervescente momento da história do país, então governado pelo primeiro-ministro Moisés Thsombé, embora o poder coubesse, de fato, ao chefe das Forças Armadas, Joseph Mobutu. Quatro anos antes, o Congo tornara-se um Estado soberano, após 52 anos de colonialismo belga. O governo eleito, uma forçada coalisão de Patrice Lumumba com seu rival Joseph Kasavubu, viu-se derrubado por um golpe de Mobutu, apoiado pela Bélgica. Começava o caos. Lumumba foi sequestrado e assassinado. Forças políticas de todos os lados tentavam tomar o poder.
Thomas Michael Hoare nasceu em 1919, na Irlanda. Durante a Segunda Guerra Mundial serviu na Birmânia contra os japoneses, na força especial dos Chindits, sob as ordens do lendário general Orde Wingate. Todos os truques de guerrilha, que usaria no Congo, aprendeu na selva birmanesa. Curiosamente, acabada a guerra, voltou ao Reino Unido e formou-se contador em Londres. Mas a expectativa de passar o resto da vida debruçado sobre planilhas lhe pareceu monótona. Assim, em 1948, bandeou-se para Durban, na África do Sul. Ali, fez de tudo. Foi até guia de safáris. Para descansar, navegava no Índico a bordo de seu veleiro, o Colin Archer.
Hoare lembra muito bem do dia em que desembarcou no Congo, para acertar o seu primeiro contrato com Mobutu. Ele foi o único passageiro a descer as escadas do avião da Sabena, a companhia aérea belga, no aeroporto de Leopoldville.
Era fácil reconhecer os soldados do 5° Comando. Todos usavam no ombro esquerdo o distintivo dos Wild Geese. Era uma homenagem aos verdadeiros Gansos Selvagens, um grupo de mercenários irlandeses que, no século 18, colocou suas armas a serviço de quem pagasse melhor. Mais de 19 mil homens chegaram a formar parte dos Wild Geese originais. Os gansos de Hoare no Congo não seriam tantos. No começo da campanha eram apenas 200.
No decorrer dos 17 meses que durou seu contrato (1), Hoare fez o que pôde para barrar os planos daqueles que pretendiam derrubar o governo golpista, incluindo revolucionários maoístas. O apelido de “mad” seria dado mais tarde, quando as transmissões de rádio da Alemanha Ocidental passaram a chamar Hoare e seus homens de “mad bloodhounds from the imperialism” – ou “sabujos loucos do imperialismo”. Mike gostou e incorporou o apelido ao nome.
“Se você é um homem jovem que procura por um emprego especial, com vencimentos superiores a 100 libras for mês, telefone para 838-5203, no horário comercial. O emprego terá, em princípio, a duração de seis meses. Início imediato.”
Vários anúncios como esse começaram a aparecer nas colunas de ofertas de empregos nos jornais de Johannesburg (África do Sul) e Salisbury (hoje, Harare, no Zimbábue), em agosto de 1964. Alcoólatras, vagabundos, drogados, maconheiros e, para surpresa de Hoare, também homossexuais compareceram. De acordo com Hoare, “85% dos alistados tinham algum treinamento militar de alguma espécie; 5% não eram soldados no sentido da palavra, só aventureiros; e os 10% restantes eram profissionais de verdade”.
Foi com esses 10% que Mad Mike criou o 5° Comando e partiu para o confronto com os milhares de simbas, grupo dirigido pelo ex-ministro da Educação Pierre Mulele e originalmente de esquerda, que degringolou em fanática caça ao modo de vida “ocidental”. Eles estavam perto de Leopoldville, a capital do país.
Desde o começo Hoare soube como enfrentar duas das mais potentes armas utilizadas pelos demagogos africanos: bruxaria e superstição. Essa é a maneira usada pelos líderes de qualquer revolução na Africa, até hoje, para vitaminar seus combatentes. Em teoria, a mai-Mulele, a água de Mulele, que os simbas tomavam antes das batalhas, os tornava imunes às balas. Isso até encontrarem pela frente os soldados de Hoare, que, armados com seus fuzis espanhóis SETME, provaram que a magia não é páreo para a realidade. O 5° Comando abriu caminho na selva com um poder de fogo insuperável. Considerado o maior líder mercenário da época moderna, Hoare usava como ardis a rapidez e a surpresa.
“Reze a Deus todos os dias.” Este é o primeiro do decálogo do código de batalha de Mad Mike (veja quadro). Ele era meticuloso e temente a Deus. O contrário de Bob Denard (2), outro comandante mercenário que fez fama e fortuna na África. Francês, Denard tinha prazer em ouvir seus homens serem chamados de “les affreux” (os horrorosos). Hoare sempre foi mais escrupuloso. Fez questão de que sua tropa mostrasse um comportamento rígido. Entre outras regras, exigia que seus soldados “nem sonhassem em usar os ‘indecentes’ shorts cáqui curtos ou as meias arriadas, como meninas na escola”. A descrição é a do uniforme dos paraquedistas belgas.
Sentado em um café em Bordeux, em uma tarde de inverno francês, Paul Duval lembrou os tempos em que serviu, aos 18 anos, sob as ordens de Bob Denard. E o compara a Hoare. “Denard era um pouco mais esculhambado em relação ao comportamento dos soldados.” Segundo Duval, o irlandês sempre foi mais minucioso. “Talvez a alma da porra de contador que ele tinha falasse mais alto”, disse o ex-mercenário francês. Duval não nega seu fascínio por Hoare. “Ele parecia saber tudo, sempre, sobre a guerra de guerrilha. Mais até do que os guerrilheiros.” E emenda: “O cara era inacreditável. Nunca o vi desalinhado na linha de frente. Não perdia a calma. O cara era foda”.
Hoare jamais se desculpou por ser um mercenário. Ao contrário. Sempre teve orgulho disso. Ele queria tornar respeitável a imagem dos chamados “soldados da fortuna”, fato que só aconteceu 50 anos depois, quando forças especiais foram contratadas às pencas para servir de apoio ao exército americano na ocupação do Iraque.
O objetivo do 5° Comando era libertar Stanleyville (hoje, Kisangani) dos revolucionários. O escritor James Conrad, em seu livro Heart of Darkness, menciona a cidade como o “posto avançado”, o lugar em que as Stanley Falls – agora, Cataratas Botoma – impedem a navegação pelo rio Congo. A caminho de Stanleyville, o decidido Hoare foi libertando pequenas vilas. Pelo trajeto, deparou-se com um rastro de sangue e de atrocidades que fazem as barbaridades do Estado Islâmico parecerem trote de faculdade do interior de São Paulo. Freiras, frades, fazendeiros e colonos foram encontrados escondidos na selva. Alguns em estado catatônico. Outros, tarde demais – como o prefeito de Stanleyville, morto com crueldade nas escadarias do monumento a Patrice Lumumba. Ainda em vida, o homem teve seu fígado arrancado, na frente de uma multidão em transe, e deixado agonizar para delírio geral.
A selvageria dos revolucionários nunca foi obstáculo para Hoare. Em termos de confronto o lema dele era o de se “ajustar às táticas do inimigo”. Eis o seu código de conduta: “Seguir sempre as regras de Queensburry na luta quando se defrontasse com um cavalheiro, mas não obedecer a regra alguma ao enfrentar os selvagens, porque eles nunca vão te respeitar se você usar luvas e palavras suaves. Estes são os sinais de fraqueza na tradição africana”. De acordo com o jornalista Al J.Venter em seu livro War Dog-Fighting Other Peoples Wars (2003), durante o tempo em que o 5° Comando esteve sob as ordens de Hoare, foi feito apenas um prisioneiro – e isso porque tinha informação importante.
A tolerância zero não era apenas com o inimigo. Sobrava para qualquer um que cometesse bobagens dentro de tropas. É conhecida a história do dia em que Hoare teve de julgar um voluntário, jogador de futebol na vida civil, que havia estuprado e matado uma adolescente congolesa. No meio de uma noite chuvosa, uma corte marcial foi instaurada. Comprovado o fato, os quatro oficiais destacados para o julgamento depositaram seus vereditos no boné de Hoare. Não houve consenso. Um dos oficiais recomendava o fuzilamento do soldado. Outro propunha sua liberação. Hoare deu a sentença: a mutilação dos dedões do pé do acusado. Mad Mike em pessoa aplicou a pena com dois tiros de Colt 45. Dispensado, o réu seguiu para o hospital. Cinco dias depois, o infeliz morreu em um acidente de aviação, quando voltava são e salvo para casa.
Ivan Smith, que lutou sob as ordens de Hoare no Congo, tem lembranças opostas aos relatos de Paul Duval. Smith serviu no 5° Comando. Em suas recordações, narradas no livro Mad Dog Killers (2012), Hoare só aparecia para fazer discursos e nunca teve uma linha de comando estabelecida. Além disso, segundo Smith, faltavam comida e uniformes, e o tempo livre era dedicado a saquear o que os guerrilheiros e o exército congolês tivessem esquecido. Sem contar que o pagamento nunca foi feito por completo (3). Os soldados da ANC diziam que sabiam de onde eram os mercenários porque “os alemães estão sempre comendo, os sul-africanos estão sempre bebendo e os belgas sempre atrás de nossas garotas”.
Se no começo da campanha no Congo o inimigo eram bandos de alucinados acreditando que estavam protegidos pela feitiçaria do mai-Mulele, com o tempo Hoare passou a enfrentar forças mais organizadas e com melhor poder de fogo e considerável arsenal russo e chinês (4). Mad Mike começou a interceptar conversas em espanhol pelo rádio. Com o tempo descobriu que eram cubanos. Chou-en-Lai, o primeiro-ministro chinês, havia declarado que, se conseguisse tomar o Congo, tomaria a África inteira. E era para lá que todos os movimentos armados de esquerda convergiram. Hoare não sabia, mas quem estava do outro lado era ninguém menos que Ernesto “Che” Guevara. O guerrilheiro e um grupo de cubanos davam suporte e instrução aos guerreiros bahembi, que, ao contrário dos simbas, tinham disciplina para a luta.
O confronto final entre Mad Mike e o cubano ocorreu na tomada, pelo 5° Comando, das bases de Fizi-Baraka. Guevara, em seu livro-póstumo Pasajes de la Guerra Revolucionaria: Congo (1999), descreve a época como “um mês de absoluto desastre. A vergonhosa queda da frente de Baraka, Fizi, Lubondja e Lambert foi aumentada pela surpresa que me deram em Kilombe”. Hoare encurralou as tropas de Guevara. Atacou de madrugada, pela retaguarda.
Baraka, além de ser um centro fortificado importante à beira do lago Tanganica, ponto de entrada de armamento e reforços para os cubanos que vinham de Dar-es-Salam, é a palavra que designa “sorte” em árabe. A partir daquele momento, a sorte dos guerrilheiros estava selada. A coluna de Hoare continuou avançando até fechar a fronteira do Congo com a Uganda e o Sudão. Mad Mike tinha completado a missão que o general Mobutu, agora presidente do Congo, havia lhe encarregado.
A relação de Hoare com Mobutu sempre foi de deferência. “Alguns generais podem inspirar entusiasmo e outros não. O general Mobutu pertencia ao primeiro grupo”. Hoare não diria o mesmo dos diplomatas ingleses, que não viam com alegria suas andanças pelo Congo. “Se eu era persona non grata na Embaixada Britânica”, diz Hoare em seu livro Congo Mercenarie (1967), “não era este o caso no Quartel-General da ANC. (…) Se, no passado, Mobutu tinha sido frio e distante, agora era efusivo e amistoso sempre que o visitava.” (5) Mas isso não queria dizer que Mobutu se lembrasse de todos os compromissos. Ele nunca honrou a promessa, feita para convencer Hoare a aceitar o último contrato, de recompensá-lo com uma casa à beira do lago Tanganica, com dois guardas armados à porta.
Em 1978, um filme feito por Hollywood sobre mercenários foi lançado. Dirigido por Andrew McLaglen, mostrava Richard Burton, Roger Moore, Richard Harris, Stewart Granger e Hardy Krüger como soldados contratados para levar a cabo, em um país da África Central, um golpe de estado financiado por uma multinacional britânica. Eles são vítimas de interesses econômicos e políticos e, no final, as coisas não acontecem da maneira esperada.
Quem assistisse com atenção podia perceber que todos ostentavam uma familiaridade fora do normal no manejo de armas de fogo. Para aumentar a autenticidade, os produtores treinaram os atores e reuniram ex-soldados entre os figurantes. O papel de Richard Burton como o coronel Allen Faulkner foi inspirado, para não dizer copiado, da vida de Mad Mike. O próprio Hoare viu-se contratado como conselheiro técnico ao longo das filmagens. O nome do filme? The Wild Geese. No Brasil, Selvagens Cães de Guerra.
Hoare se esqueceu de que, se a vida imita arte, é sempre bom ter um bom roteirista por perto. Anos mais tarde, embarcou em uma enrascada que descartaria caso tivesse mirado o próprio passado. Em 1981, três anos depois das filmagens, ele foi convidado a participar de um golpe de Estado nas Seychelles. Hoare e mais 43 mercenários desenharam um plano mirabolante para derrubar o governo do arquipélago. Entrariam no país como um grupo de bebedores de cerveja, o Ancient Order of Frothblowers. Toda a sorte de Hoare nas campanhas no Congo evaporou-se quando um de seus homens foi pego no aeroporto de Mahé com uma metralhadora AK-47 na bagagem. O excesso de confiança se converteu em um tiroteio que culminou com o sequestro de um avião da Air India, para poder escapar de Seychelles. O resultado: Mad Mike e seus homens foram parar numa prisão na África do Sul. Hoare cumpriu três anos à sombra.
Um provérbio congolês diz: “Se você olha para o rio Congo por tempo suficiente, algum dia verá seu inimigo passar flutuando”. Hoare não teve tempo, nem paciência, para ficar sentado à beira do rio, mas todos os personagens históricos com quem se confrontou na África desapareceram. De Chou-en-Lai a Mobutu, de Guevara a Bob Denard, todos viraram parágrafos em livros de história. O Congo continua ingovernável. O lendário Mad Mike Hoare está vivo. Aos 96 anos, mora no sul da França, rodeado de lembranças, façanhas e a certeza de que sua missão no Congo foi cumprida.