Não chega a ser um gênero. Mas chamar o Filme noir de subgênero é correr o risco de enfrentar a ira do pérfido vilão, do detetive frio e da femme fatale. Sem contar a bronca dos críticos franceses
Por Roberto Muggiati
Uma caixa com três DVDs intitulada Filme Noir – Seis Clássicos do Gênero caiu como uma bomba nos meios cinéfilos. Na capa, uma foto do bad boy Robert Mitchum – isqueiro na mão, cigarro na boca, chapéu enfiado na cabeça –, sob o olhar sedutor da femme fatale Jane Greer. De novo no ar, o gênero provoca discussões acaloradas. É arte ou não é? Quais os melhores e os piores? E, afinal, o que é o filme noir?
No fundo, nada mais nada menos que o antigo “filme policial”, aquelas produções baratas do final dos anos 1930 ao início dos 50, feitas para um público ávido de mistério e emoção. Uma crítica, Silvia Harvey, delimita até o seu tempo de vida: de Relíquia Macabra (The Maltese Falcon, 1941) até A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958). Pessoalmente, acho que o gênero começou a definhar com um filme dessa caixa, A Morte num Beijo (Kiss me Deadly, 1955), um noir densamente estilizado de Robert Aldrich, em que uma mulher fatal abre uma caixa (de Pandora) – a “relíquia macabra” do filme – e desencadeia um miniapocalipse nuclear numa casa de praia da Califórnia. Em Com as Horas Contadas (D.O.A, 1950), o protagonista é envenenado com pó radiativo. Em Anjo do Mal (Pickup on South Street, 1953), a “relíquia macabra” é um microfilme com uma fórmula secreta cobiçada pelos comunistas. Quando a Guerra Fria se insinua, o bom velho noir acaba perdendo o seu eixo.
Quais os ingredientes essenciais do filme noir? Um cadáver, ou uma penca deles. Um mocinho, geralmente detetive e forte; uma mocinha, geralmente ingênua e vulnerável; uma vilã, a femme fatale; um vilão, o bandido frio e sanguinário, ou o psicopata assassino. É difícil um filme noir sem um assassinato, pelo menos. Na visão ortodoxa, o noir seria essencialmente urbano e noturno. Mas dois clássicos violam essa regra. Fuga do Passado (Out of the Past) se passa nas montanhas e lagos idílicos da região de Tahoe, na Califórnia, com uma incursão a Acapulco. Também cucaracho é A Marca da Maldade, na fronteira México-Estados Unidos, de Orson Welles. Metade de A Dama de Xangai (The Lady of Shanghai) se passa a bordo de um iate, com um passeio pelo México. Outros noirs abandonam a urbe, como O Cais da Maldição (South of the Border, com Bob Mitchum), Os Quatro Desconhecidos (Kansas City Confidencial, com John Payne) e o britânico A Ponte do Destino (Across the Bridge, com Rod Steiger). No noir, às vezes conta menos a localização do que a trama psicológica, as nuanças de sombra e luz, o diálogo cortante.
Mas é inegável que a metrópole e a noite predominam no cenário dos filmes do gênero. Arranha-céus, ruas lavadas pela chuva, anúncios de neon, carros rodando pelo asfalto. O exterior do noir reflete modernidade, mas os interiores remetem ao passado, em prédios de apartamentos claustrofóbicos, sufocados por cortinas, tapetes e móveis pesados, espelhos e relógios. E escadarias com elaborados corrimãos de balaustrada. Numa cena icônica de O Beijo da Morte (Kiss of Death), Richard Widmark, em sua estreia – a gargalhada sinistra lhe valeu o apelido de “Risadinha” –, empurra escada abaixo uma paralítica atada à cadeira de rodas. Hitchcock viu tudo e usou na genial sequência da morte do detetive Arbogast em Psicose (Psycho), na casa da “mãe” de Norman Bates.
A fauna humana do noir também é característica: policiais, bandidos, mulheres desgarradas (a dona de casa geralmente é vítima ou refém), advogados e políticos corruptos, jogadores, barmen, alcoólatras, azarados. O herói romântico é o detetive particular (em inglês, private eye, ou gumshoe, dos sapatos de sola de borracha). Esse protagonista evoluiu dos investigadores da pulp fiction, com destaque para Sam Spade (Dashiell Hammett) e Philip Marlowe (Raymond Chandler) – no fim da linha vem Mike Hammer (de Mickey Spillane), mais violento e corrupto até do que o mundo que o cerca.
Essas histórias pertencem ao gênero chamado hard boiled, em que impera a brutalidade, em oposição ao whodunnit, a elegante novela de mistério à Agatha Christie. O charme do detetive particular concentra-se na narração na primeira pessoa. Um exemplo, do neo-noir, é O Último dos Valentões (Farewell, My Lovely, 1975). No início do filme, Robert Mitchum filosofa, contemplando Los Angeles da janela de um sórdido quarto de hotel: “A primavera passada foi a primeira em que me senti cansado e me dei conta de que estava ficando velho. Talvez fosse o tempo miserável que fazia em LA. Talvez fossem os casos miseráveis de que cuidei, a maioria deles à caça de maridos sumidos e depois à caça das mulheres para ser pago. Ou talvez fosse apenas o simples fato de que eu estava ficando velho”.
Em Entre Dois Fogos (Raw Deal, 1948), da caixa de três DVDs, a narrativa fica com a mulher, Claire Trevor: “Hoje é o dia. O último em que terei de atravessar estes portões. Estas barras de ferro que me separam do homem que amo. Esta noite ele fugirá destes muros”. Mortos ou moribundos também relatam a sua história: William Holden em Crespúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard); Clifton Webb em Laura; e Fred MacMurray em Pacto de Sangue (Double Indemnity). Em A Dama do Lago (Lady in the Lake), Robert Montgomery dirige e interpreta o detetive Philip Marlowe numa experiência ousada: o olho da câmera é o do próprio detetive, que só aparece refletido em espelhos. O Ladrão Silencioso (Thief, 1952), com Ray Milland, é um filme mudo, sem direito a legendas.
O automóvel também é um personagem no noir. Pacto de Sangue começa com um carro desgovernado ziguezagueando pelas ruas vazias na madrugada de Los Angeles. O desenlace de Fuga ao Passado (Out of the Past) ocorre dentro de um carro. No cult Curva do Destino (Detour), a sorte (ou melhor, o azar) dos personagens é determinado por caronas na estrada. Em O Mundo Odeia-Me (The Hitch-Hiker), dois amigos de férias dão carona a um assassino e vivem um pesadelo quase fatal.
A estrada, mais do que seu atrativo visual, aparece às vezes como metáfora da própria vida. Anjo ou Demônio? (Fallen Angel) começa com a estrada vista de dentro de um ônibus, os letreiros do filme apresentados na forma de placas de sinalização. Em Alma em Pânico (Angel Face), o carro é a arma do crime. Já em A Confissão de Thelma (The File on Thelma Jordan), a arma, mais especificamente, é o isqueiro do painel do carro. Mulher e amante matam o marido dentro de um automóvel em duas histórias de James M. Cain: Pacto de Sangue e O Destino Bate à Porta (The Postman Always Rings Twice). A Senda do Temor (The Chase), antecipa em 50 anos o pesadelo de Velocidade Máxima: o mocinho dirige o carro, mas não tem controle sobre a velocidade, que é acionada perversamente pelo vilão com um dispositivo no banco traseiro.
Um dado essencial: muitos dos seus criadores – do diretor ao iluminador, do cenógrafo ao compositor – eram europeus fugidos do nazismo. Poupo o leitor de uma imensa listagem de nomes cheios de consoantes. Trato apenas de um só: o cineasta austríaco Fritz Lang (Friedrich Anton Christian Lang), autor de protótipos do noir como Dr. Mabuse (1922) e O Vampiro de Düsseldorf (1931), além do fantástico Metrópolis (1926). Nos Estados Unidos, de 1936 a 1956, Lang dirigiu 22 filmes, entre eles uma dezena de noirs clássicos.
Existe um DNA do noir. Na descrição pitoresca da crítica Jeanine Basinger, “ele é uma espécie de vírus que ataca um gênero saudável e o faz ficar doente”. O noir e seus maneirismos contaminaram todos os outros gêneros: faroeste [Matar ou Morrer (High Noon), O Mensageiro do Diabo (The Night of the Hunter)]; espionagem [O Terceiro Homem (The Third Man), O Espião Que Veio do Frio (The Spy Who Came from the Cold)]; drama [O Fio da Navalha (The Razor’s Edge), Sindicato de Ladrões (On the Waterfront)]; ficção científica [Invasores de Corpos (Body Snatchers), Blade Runner]; terror [Os Inocentes (The Innnocents), The Damned]; comédia (os clássicos dos Ealing Studios com Alec Guinness) e até o musical [imperdível, o balé de dez minutos The Girl Hunt – paródia de Mickey Spillane, com Fred Astaire e Cyd Charysse – está inserido no filme A Roda da Fortuna (The Band Wagon, 1953)].
Um reparo sobre a rubrica: estes filmes americanos só passariam na França no pós-guerra, entusiasmando os críticos, muitos deles futuros cineastas da nouvelle vague. O nome do gênero inspirou-se na “série noire”, coleção de romances policiais da editora Gallimard, iniciada em 1945. Talvez mais livros e artigos tenham sido escritos sobre o noir do que o número de filmes produzidos. Cito apenas um deles, à guisa de conclusão, Nabokov’s Dark Cinema, em que Alfred Appel, Jr. proclama: “O filme noir é uma poderosa prova de que a cultura popular, nossa língua franca, funciona como folclore ou mitologia”.
OS MEUS 15 FAVORITOS
por Roberto Muggiati
– Relíquia Macabra (The Maltese Falcon) John Huston, 1941.
O clássico de Dashiell Hammett roteirizado por Huston conta com uma turma da pesada: Humphrey Bogart, Mary Astor, Peter Lorre, Sydney Greenstreet e Elisha Cook, Jr.
– Pacto de Sangue (Double Indemnity) Billy Wilder, 1944.
Romance de James M. Cain roteirizado por Wilder com diálogos de Raymond Chandler. Fred MacMurray, Barbara Stanwyck, Edward G. Robinson.
– Laura Otto Preminger, 1944.
Gene Tierney, Dana Andrews, Clifton Webb, Vincent Price. Detetive apaixona-se por cadáver ao som da canção de David Raksin.
– A Dama Fantasma (The Phantom Lady) Robert Siodmak, 1944.
Franchot Tone, Ella Raines, Alan Curtis, Fay Helm, Elisha Cook, Jr., Aurora Miranda. Baseado em romance de William Irish (Cornell Woolrich), autor cult que turbinou o cinema (Janela Indiscreta, A Noiva Estava de Preto.)
– Almas Perversas (Scarlet Street) Fritz Lang, 1945.
Edward G. Robinson, Joan Bennett, Dan Duryea. Baseado na peça La Chienne, de Georges de la Fouchardière filmada por Jean Renoir em 1931.
– À Beira do Abismo (The Big Sleep) Howard Hawks, 1946.
O clássico de Raymond Chandler com Bogart e Bacall em seu segundo filme, já casados. Brindes: Dorothy Malone (a livreira sexy) e Elisha Cook Jr (o eterno born loser). Coassina o roteiro um futuro Nobel, William Faulkner.
– A Dália Azul (The Blue Dahlia) George Marshall, 1946.
Um dos três noirs do duo Alan Ladd e Veronica Lake. Roteiro original de Raymond Chandler.
– Envolto nas Sombras (The Dark Corner) Henry Hathaway, 1946.
Secretária livra chefe detetive de falsa acusação de homicídio. Bradford Galt, Lucille Ball, William Bendix e Clifton Webb, com o mesmo cinismo rascante de Laura.
– Os Assassinos (The Killers) Robert Siodmak, 1946.
Ampliado a partir do conto (dez páginas) de Hemingway. Burt Lancaster é o otário; Ava Gardner, a bandida. Edmund O’Brien, agente de seguros, vira detetive.
– Fuga ao Passado (Out of the Past) Jacques Tourneur, 1947.
Detetive gente boa crucificado por femme fatale. Robert Mitchum, Jane Greer, Kirk Douglas, Rhonda Fleming, Virginia Huston.
– A Dama de Xangai (The Lady from Shanghai) Orson Welles, 1948.
Rita Hayworth, Orson Welles, Everett Sloane, Glenn Anders, Ted De Corsia. O romance Before I Die, de Sherwood King, teve roteiro, direção, cenografia e interpretação do Gênio, que faz a Sra. Welles brilhar como femme fatale.
– O Relógio Verde (The Big Clock) John Farrow, 1948.
Thriller com humor em alta velocidade. Ray Milland, Charles Laughton, Maureen O’Sullivan, George Macready (o vilão de Gilda), Elsa Lanchester (a Sra. Laughton).
– Com as Horas Contadas (D.O.A.) Rudoph Maté, 1950.
Edmond O’Brien é um homem envenenado que tem 48 horas de vida para descobrir seu assassino.
– Anjo do Mal (Pickup On South Street) Samuel Fuller, 1953.
Trama de espionagem: batedor de carteiras (Richard Widmark) e aventureira (Jean Peters) vivem uma implausível love story ao som de “Again”. A X-9 (Thelma Ritter) é assassinada enquanto a vitrola toca “Mam’selle”.
– O Grande Golpe (The Killing) Stanley Kubrick, 1956.
Sterling Hayden, Colleen Gray, Vince Edwards, Jay C. Flippen, Marie Windsor, Ted De Corsia, Elisha Cook, Jr. Baseado em The Clean Break, de Lionel White, roteiro de Kubrick, diálogos adicionais de Jim Thompson.
Toda lista é pessoal. Procurei me ater ao cerne do noir, com um leve predomínio do passional sobre o policial, a guerra de gangues, o pesadelo penitenciário e o grande golpe. A matéria-prima vem dos grandes autores: Hammett (Relíquia), Chandler (Abismo), James M. Cain (Pacto de Sangue), Cornell Woolrich (A Dama Fantasma); de roteiros originais (Dália, de Chandler), ou dos próprios diretores: Huston, Wilder, Fuller, Kubrick. Atores emblemáticos como Bogart, Ladd, Lancaster, McMurray, Mitchum, O’Brien, Robinson, Welles; durões como Widmark e Duryea, o vilão “almofadinha”; vamps como Ava, Bacall, Greer, Hayworth, Lake, Stanwyck.Diretores de fotografia que sabiam manipular os efeitos de luz e sombra. E músicos como David Raksin (Laura), Miklos Rozsa, Max Steiner e Victor Young. Ainda, o prazer de ter, em dois filmes da lista, a finesse do arquivilão Clifton Webb e, em quatro deles, o “rei das pontas” de Hollywood, Elisha Cook, Jr.