Eugen Sandow – O homem nu

Eugen Sandow – O homem nu

A nudez de Eugen Sandow, pai do fisiculturismo, não chocava as plateias vitorianas, que viam nele um ideal.

Por Silvana Assumpção

No verão de 1904, durante uma viagem de Londres para sua casa de campo em Surrey, sir Arthur Conan Doyle sofreu um grave acidente. O Wolseley que dirigia despencou por uma ribanceira e capotou, parando com as quatro rodas para o ar. O escritor ficou preso debaixo do carro e com o peso deste parcialmente apoiado em suas costas, logo abaixo do pescoço. Rosto apertado contra o chão, peito comprimido, mal capaz de respirar, o criador de Sherlock Holmes só sobreviveu graças a um grupo de homens que acorreu rapidamente para resgatá-lo. Mais tarde, atribuiu o fato de não ter ficado paralítico às artes de seu grande amigo Eugen Sandow, cujo método de exercícios praticava e lhe garantia uma musculatura forte e resistente.

Hoje mal se sabe quem foi esse mestre, mas naquela época Sandow era o que havia de mais próximo a uma celebridade pop. Prussiano nascido no ano de 1867 em Königsberg, fizera fama como “homem forte” do music-hall na Inglaterra (e posteriormente mundo afora), mas era cultuado sobretudo por sua beleza quase sobre-humana. Exibia uma musculatura de proporções clássicas, conquistada à base de intenso trabalho físico, além de um belo rosto com olhos de azul profundo e sorriso franco. Com esses predicados e excepcional força, tornou-se alvo de uma admiração bem ao estilo vitoriano, forjada na sublimação da beleza e da técnica.

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O “Pai do Fisiculturismo”, como passou a ser reconhecido quase um século depois, era cultuado em nome dos ideais de proporção clássicos e das ciências corporais. O próprio Museu de História Natural britânico fez dele um molde de gesso para ilustrar a perfeição masculina caucasiana. Se não chegava a ser visto como um deus, seu corpo era sacralizado o bastante para que as puritanas plateias não se chocassem com sua nudez quase total nos palcos, apresentando-se só de sandálias e tapa-sexo em forma de folha desde 1890.

Sandow fazia poses que ressaltavam seus músculos e realizava proezas como rasgar baralhos, dobrar barras de ferro e romper correntes com os músculos peitorais. Apesar da idealização que o cercava, relatos de jornais dão conta de que as mulheres se entregavam a um delírio bem carnal com sua figura no palco, pondo-se de pé sobre as cadeiras, soltando gritos agudos e chegando, algumas delas, a desmaiar… O mais recente biógrafo de Sandow, o britânico David Waller, que lançou em 2011 o livro The Perfect Man – The Muscular Life and Times of Eugen Sandow, compara essa histeria à das garotas dos anos 1960 nos shows dos Beatles.

Mas a glória de Friedrich Wilhelm Müller, o nome de batismo de Sandow, não parava por aí. Em seus 58 anos de vida, conquistou todo o Império Britânico e a América do Norte como artista e autoridade em cultura física e saúde. Foi autor de diversos livros, sendo o primeiro a defender cuidados pré-natais gratuitos para as gestantes e lanches escolares para as crianças. O método de bodybuilding que desenvolveu foi adotado por homens e mulheres de todo o mundo durante longos anos, mesmo quando a fama de seu criador já decaía, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-18). Até o personagem de ficção Leopold Bloom, o herói do romance Ulisses, de James Joyce (escrito entre 1914 e 1921), faz referência ao método de Sandow.

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O centro de treinamento de Sandow, o Institute of Physical Culture, precursor das academias modernas, foi inaugurado em 1896. O endereço na elegante St. James Street, em Londres, era frequentado por uma clientela aristocrática, inclusive o rei Eduardo 7º, que assumiu o trono em 1901. Sundow foi nomeado também professor de Scientifical and Physical Culture, de George 5º, que reinou a partir de 1911. Com uma aguçada visão de negócios, criou um curso por correspondência que conquistou centenas de milhares de alunos e desenvolveu uma série de produtos com seu nome para venda por mala direta – de cacau e chocolate em pó a charutos (ele era fumante!). Mais: credenciou centenas de escolas para aplicar seu método no Reino Unido, fundou uma revista para divulgar a cultura física, patenteou alguns modelos de halteres e organizou a primeira competição do mundo de bodybuilding, realizada em 1901 no Royal Albert Hall.

Foi, enfim, um homem próspero e um perfeito cavalheiro de seu tempo, como destaca Wallen: era culto, vestia-se bem e suas amizades incluíam figurões em todas as áreas, entre eles Conan Doyle, o inventor Thomas Edison e o explorador Ernest Shackleton. Foi inclusive um dos patrocinadores da célebre expedição deste último ao polo Sul. Casado com uma inglesa e pai de duas filhas, comprou para a família uma elegante residência em Londres e teve diversos biógrafos ainda em vida. Fantasiava bastante sobre seu passado e a razão parece ter sido descoberta apenas por Wallen: era filho de mãe solteira e pai desconhecido, tendo sido adotado pelo casal Müller. Era extremamente dedicado à ginástica e aos esportes desde a adolescência. Depois de uma viagem a Roma feita aos 15 anos com o pai, apaixonou-se pela figura masculina das esculturas clássicas e redobrou seu interesse por exercícios. Seu pai, protestante, chegara a imaginá-lo feito pastor, mas o jovem Friedrich estava mais interessado no corpo que no espírito. Ao ser enviado para estudar numa universidade em Bruxelas, na Bélgica, gastava mais tempo praticando com o pessoal do circo local do que nas aulas. Os conflitos com o pai cresceram, até que este lhe cortou a mesada. Aos 18 anos, viu-se obrigado a ganhar a vida e entrou para o circo.

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Dentro do veludo negro
Ainda em Bruxelas, conheceu o alemão Louis (Ludwig) Durlacher, cognominado professor Attila, dono de um salão de ginástica na cidade e strongman famoso. Foi professor de reis como o czar Alexandre 3º e, depois de se transferir para Nova York, de milionários como o barão de Rothschild e o comodoro Cornelius Vanderbilt. Attila percebeu o potencial do jovem e o adotou como pupilo. Ensinou-lhe os exercícios corretos e as artes de palco e o convenceu a criar um nome artístico. Seus ensinamentos foram de grande valia para Sandow quando o circo em que trabalhava faliu. Teve de achar trabalho em outros palcos e passou a viajar pela Europa.

Na Itália, um pintor o viu de calção na praia do Lido, em Veneza, e o contratou como modelo. Foi esse artista que lhe falou de um desafio que haveria em Londres para eleger o “homem mais forte do mundo” – e lhe sugeriu tentar a sorte por lá. Sandow foi, venceu, ganhou um contrato para uma temporada londrina e passou a lotar plateias em todas as principais cidades inglesas. Em 1893, seu agente levou-o para os Estados Unidos, onde estourou na World’s Columbian Exposition de Chicago, num show do grande empresário do music-hall Florenz Ziegfeld. Ziegfeld fez dele sua maior atração e reorientou seu espetáculo, reduzindo as proezas de força e exibindo-o como obra de arte. Apresentava-o emoldurado por uma caixa forrada de veludo negro e com a pele empoada de branco, imitando o mármore.

As mulheres americanas pagavam um valor extra no ingresso para ir vê-lo depois nos bastidores. Lá eram incentivadas a tocar seus músculos e se deleitavam nesses “alisamentos”. Também atiravam joias ao palco durante as apresentações, em frenesi. Não é de admirar que Sandow nunca tenha tido paz com sua mulher, Blanche. Ela não quis se divorciar, mas passou a nutrir pelo marido, notoriamente infiel, um ódio tão visceral que, quando este morreu, enterrou o corpo numa sepultura sem identificação. Também vendeu a casa em que moravam e leiloou todos os pertences e lembranças dele, inclusive fotografias, cartazes e troféus. Durante 80 anos o antigo ídolo repousou no anonimato no cemitério de Putney Vale, próximo a Londres, até que em 2005 um bisneto ergueu para ele um memorial e cravou ao lado de seu nome o epíteto de “Pai do Fisiculturismo”. Em 1977, o mundo do bodybuilding o homenageou modelando sua figura na estatueta que premia o primeiro colocado na competição Mr. Olympia. Um dos donos do “Sandow” é Arnold Schwarzenegger, que conquistou o título em 1980.

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Vítima de boatos
Antes de Wallen, outro biógrafo contemporâneo, David Chapman, debruçou-se sobre a vida do atleta no livro Sandow the Magnificent: Eugen Sandow and the Beginnings of Bodybuilding, lançado em 1994. Além do tema do subtítulo, escrutinou a intimidade de seu personagem, especialmente sua sexualidade. Baseado mais em especulações do que em fatos, dá como certa sua bissexualidade, mesmo admitindo que tenha sido um mulherengo. Supõe-se que Sandow tenha tido uma longa relação com Martinus Sieveking, o jovem pianista que o acompanhava nos shows de Ziegfeld – e com quem dividia as acomodações nas turnês. Além do falatório de uma atriz francesa que teve seus avanços rejeitados pelo astro, um indício apontado por Chapman foi o fato de Sieveking abandonar o show ao saber que o companheiro se casaria, em 1894.

Sendo tão famoso e invejado, nos anos da Primeira Guerra o fato de ser prussiano provocou ainda mais boatos a seu respeito. Espalhou-se que era espião e usava em seus produtos de cacau e chocolate, nos quais havia feito enorme investimento, matérias-primas e tecnologia “inimigas”. As vendas despencaram e seu patrimônio financeiro encolheu rapidamente. Manteve sua academia na St. James Street e até a sua morte, em 1925, aparentava muito menos idade do que tinha. Pesquisas de Chapman, entretanto, revelaram que algumas pessoas, entre elas Ziegfeld, tinham conhecimento de que Sandow não estava em perfeita saúde. Supõe-se que tivesse sífilis, pois sua morte foi atribuída oficialmente a um aneurisma na aorta, que vem a ser uma das complicações dessa doença. O aneurisma teria se rompido depois de fazer o esforço brutal de levantar sozinho seu carro atolado na lama. A escassez de material sobre sua vida privada não permite esclarecer essa e outras dúvidas. Mas nada apaga sua grandeza de “homem perfeito” – e uma das maiores influências culturais de seu tempo.

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