My name is Fleming, Ian Fleming

My name is Fleming, Ian Fleming

Por Marcello Borges

O homem que criou o espião britânico james bond era ainda mais cheio de manias e hábitos excêntricos do que a sua criatura.

Ele não era lá muito atraente. Tinha olhos azuis, sim. Mas tristes e caídos como os de um buldogue. No rosto de lábios finos, destacavam-se as orelhas avantajadas e o nariz igualmente grande, quebrado na juventude em uma partida de futebol – bateu de frente com Henry Douglas-Home, irmão do futuro primeiro-ministro britânico Alec. Entre uma baforada e outra dos 80 cigarros Morland que fumava por dia com uma piteira Dunhill viam-se os dentes, patriótica e britanicamente tortos e desiguais. Seu nome? Ian Lancaster Fleming, mais conhecido como Ian Fleming – o criador de James Bond.

Fleming nasceu em 28 de maio de 1908 no elegante bairro de Mayfair, em Londres. Era filho de Valentine Fleming, aristocrata britânico, membro do Parlamento pelo Partido Conservador e morto na Primeira Guerra Mundial, e de Evelyn St. Croix Rose, socialite que dizia descender de John of Gaunt, duque de Lancaster, razão do segundo nome de Ian. O irmão de Evelyn, Harcourt, foi padrasto do ator Christopher Lee – que fez o papel de Francisco Scaramanga, o vilão de 007 contra o Homem com a Pistola de Ouro (1974).

Ian não foi um aluno exemplar em Eton, a tradicional escola da elite, fundada em 1440, embora se saísse bem em atletismo. Talvez o fato de o diretor do internato ser um sádico, aplicando-lhe surras sistemáticas, tenha contribuído para o fraco desempenho acadêmico. Aliás, como se verá, as sovas devem ter causado a Fleming outros problemas.

Aos 17 anos, ele saiu de Eton e foi para a academia militar de Sandhurst. Não deu muita sorte. Pegou uma DST com uma prostituta e, mais tarde, acabou expulso da escola. Com 23 anos, viu-se trabalhando como jornalista na agência Reuters e, aos 31, tornou-se assistente do diretor da Inteligência Naval. Esse período foi, sem dúvida, a sementeira onde o perfil do agente 007 germinou. Na década de 1930, Ian morou em um apartamento no bairro lodrino de Victoria e ali instalou o Le Cercle Gastronomique et des Jeux de Hasard, um grupo de amigos que gostavam de comer, jogar e viver bem. Não raro, atravessava o canal da Mancha, que britânicos chamam de British Channel, e ia a Deauville em busca de suas predileções – cassinos, golfe e mulheres.

Sadomasoquismo

Em 1936, aos 28 anos, Ian estava passando alguns dias no elegante balneário de Le Touquet, que desde o início do século 20 sofria – do ponto de vista francês – a “invasão britânica”. Ali, conheceu numa piscina Ann Charteris, na época casada com o lorde Shane O’Neill. Ela comentou que Ian era um “sujeito bonitão, pensativo”. Ele usava seu ar de melancolia e sua arrogância para seduzir em quatro idiomas.

Tiveram um caso longo e tórrido, mas, após a morte de Shane na Segunda Guerra Mundial, em 1944, Ian recusou-se a se casar com Ann. Ela acabou se casando no ano seguinte com o magnata da imprensa Esmond Harmsworth, visconde Rothermere. Isso não impediu o casal de continuar a se encontrar e de trocar correspondência apaixonada.

Após a guerra, Ian foi trabalhar no jornal Sunday Times. Juntou economias e comprou um terreno na Jamaica, onde construiu Goldeneye, a casa onde escreveu a maioria dos livros de Bond. O atual proprietário, Chris Blackwell – dono da gravadora Island, que lançou Traffic, Bob Marley e U-2, entre outros –, converteu a construção em um hotel. A mãe de Blackwell, Blanche, teve um caso com Fleming e lhe deu de presente um pequeno barco, ctopussy, título de uma das histórias de 007. (Se você for à Jamaica visitar o hotel, seu avião vai pousar no Ian Fleming International Airport.)

Por algum motivo, Ian lidava mal com as mulheres. Batia nelas e gostava de apanhar, provavelmente fruto de seu período em Eton. Seu apartamento em Londres estava repleto de livros sobre flagelação. Numa das cartas de Ann, em 1947, ela comentou sobre os dias que haviam passado juntos: “Foi um período tão breve e tão feliz, e creio que adorei cozinhar para você, dormir ao seu lado e ser chicoteada por você… Acho que nunca amei tanto assim antes”. Em 1952, cansado de ser traído, Harmsworth divorciou-se de Ann. Pouco depois, ela e Ian se casaram.

Ann era sociável. Ian, um recluso. Gostava de ficar em Goldeneye, que não tinha vidraças nas janelas, apenas venezianas, para que a brisa percorresse a casa. Pela manhã, comia ovos mexidos, de preferência de galinhas Marans, vermelhos e extragrandes, que adorava a ponto de pedi-los – só os ovos – até no Lutèce de Nova York, na época um dos melhores restaurantes dos Estados Unidos. Era cáustico com gente que se vestia mal e tinha maus modos. Cortava os cabelos na Geo. F. Trumper, tradicional barbearia londrina, e trajava-se bem, com costumes clássicos da Benson, Perry & Whitley, e impecáveis chapéus James Lock. Isso, claro, quando não estava na Jamaica. Em Goldeneye, seu uniforme era composto por bermudas, sandálias e camisas de mangas curtas Turnbull & Asser feitas de Sea Island, um algodão especial, extremamente leve.

Kennedy era um fã

Ann estimulou Fleming a escrever, e dizem que ele começou a trabalhar em Casino Royale, a primeira aventura de 007, na manhã de 15 de janeiro de 1952, pouco antes de se casar com Ann, então grávida. Concluiu o texto em 18 de março. Desde então, passou os primeiros meses de cada ano na Jamaica escrevendo um novo livro sobre James Bond. No total, foram 12 romances e duas coleções de contos.

A primeira edição de Casino Royale, com 4.728 exemplares, foi vendida em menos de um mês. Outras se seguiram e tiveram ótima saída na Inglaterra. O fato de Kennedy mencionar em 1961 que era fã de James Bond fez os livros do espião dispararem nas listas dos mais vendidos nos Estados Unidos.

Depois de terminar Casino Royale, Fleming deu-se uma recompensa. Encomendou uma máquina de escrever Royal Quiet Deluxe Portable 1947 folheada a ouro, na qual escreveu, a partir daí, toda a sua obra. Numa carta a um amigo de Nova York, pediu que este levasse a máquina para a Inglaterra em sua próxima viagem: “Um pedido vital. Mandei construir para mim, pela Royal Typewriter Company, uma máquina de escrever dourada que vai custar US$ 174”. A relíquia foi vendida em leilão, no ano de 1995, por cerca de US$ 90 mil e não se soube mais do paradeiro dela.

Surge o espião

James Bond nasceu na Filadélfia em 4 de janeiro de 1900. Opa, alto lá: Bond não era inglês? Mais ou menos – na verdade, era suíço. Estou falando do verdadeiro Bond.

Fleming ainda não tinha um nome para o seu personagem. Queria que fosse “o mais comum possível”. Observador de pássaros, tinha em sua estante o livro Aves das Índias Ocidentais, publicado em 1936 pelo ornitólogo James Bond, que morava na Jamaica e era seu vizinho. Fleming escreveu: “Ocorreu-me que esse nome curto, pouco romântico, anglo-saxão e bem masculino era tudo de que precisava, e assim nasceu o segundo James Bond”.

Fleming procurou o tal vizinho e perguntou se concordaria em emprestar seu nome para o personagem. “Por mim, tudo bem”, disse Bond. Em 1964, Fleming deu-lhe de presente um exemplar da primeira edição de Só se Vive Duas Vezes com a seguinte dedicatória: “Para o verdadeiro James Bond, do ladrão de sua identidade”. Em dezembro de 2008, esse exemplar foi leiloado por US$ 84 mil.

A data de nascimento de Bond, o personagem, é discutível, embora a maioria concorde que o mês é novembro: uns dizem que no dia 11, dia do Armistício; outros, no dia 16. O ano? Bem, James Bond tem sempre em torno de 40 anos. Seu pai era escocês, Andrew Bond, e sua mãe, Monique Delacroix, suíça, e os dois morreram juntos num acidente de montanhismo. Bond teria nascido na Suíça (posso ver a rainha tendo um piripaque). Foi criado por uma tia após a morte dos pais.

“Parece-se com Hoagy Carmichael”, diz a personagem Vesper Lynd em Casino Royale, referindo-se ao músico e ator americano, autor de “Stardust” e “Georgia on My Mind”. Aliás, Fleming não deixa muito para a imaginação ao descrever Bond em Moscou contra 007: “Altura: 1,83 metro, peso: 76 quilos; porte esguio; olhos azuis; cabelos pretos; cicatriz no rosto direito e no ombro esquerdo; sinais de cirurgia plástica no dorso da mão direita [ele teria sido marcado a faca como espião por agentes da Smersh com a letra cirílica SH]; atleta consumado; especialista em tiro com pistola, boxe e atirador de facas; não usa disfarces. Fala francês e alemão. Fuma muito [por dia, uns 60 a 70 cigarros Morland com fumos turcos e dos Bálcãs, os mesmos de Fleming]; vícios: bebe, mas não demais, e mulheres. Acredita-se que não aceita suborno”.

Ao saber que Sean Connery fora escalado para fazer o primeiro James Bond, Fleming não gostou – achou-o “pouco refinado”. Se lembrarmos que, antes de ser ator, Connery trabalhou como leiteiro e motorista de caminhão, até faz sentido. Mas, depois de ver o filme pronto, Fleming mudou de ideia.

O comandante James Bond era membro voluntário da reserva naval, ou RNVR – aliás, Ian Fleming também era um RNVR. Seu número como agente é composto pelo duplo zero (a famosa licença para matar) e um número sequencial. Sabe-se que 007 era o codinome de John Dee, mago e espião da rainha Elizabeth I. Mas sabe-se, também, que as comunicações mais secretas do Almirantado, onde Fleming trabalhava, começavam com “00”.

Fleming transferiu para Bond vários de seus gostos e descreveu o agente secreto tal como ele próprio gostaria de ter sido – e que foi, até certo ponto. Além disso, para compor o personagem Fleming inspirou-se em diversos agentes que conheceu durante a guerra, como o comandante Forest “Tommy” Yeo-Thomas.

Mas o mais influente deles deve ter sido o espião Wilfred “Biffy” Dunderdale, chefe do MI6 em Paris. Jantava habitualmente no Maxim’s; dirigia um Rolls-Royce blindado; usava ternos de alta alfaiataria e abotoaduras Cartier. Bon vivant, Dunderdale desfrutava da companhia de belas mulheres e gostava de carros esporte. Amigo de Fleming durante a Segunda Guerra, teve um papel crucial na decifração do Enigma, o cifradíssimo código usado pelos alemães.

Após a Segunda Guerra Mundial, o maior inimigo do Ocidente tornou-se a União Soviética: a polarização entre as potências dos dois hemisférios transformou-se numa guerra não declarada, que George Orwell – autor de 1984 – cunhou de “Guerra Fria” num artigo no The Observer de março de 1946: “Após a conferência em Moscou em dezembro passado, a Rússia começou a travar uma ‘guerra fria’ contra a Grã-Bretanha e o Império Britânico”. Evidentemente, Fleming não deixou escapar a oportunidade de transformar os agentes soviéticos nos inimigos preferenciais de Bond – ou, como diria o Capitão Renault no final de Casablanca, seus “suspeitos de costume”. Sem a Guerra Fria, Bond não teria sido inventado. Tout court.

Bond casou-se apenas uma vez, em 007 a Serviço Secreto de Sua Majestade (1969), único filme de George Lazenby no papel do espião. Ele se casa com a condessa Teresa (Tracy) di Vincenzo, que é morta a mando da SPECTRE a caminho da lua de mel.

Shaken, not stirred

Fleming bebia muito, especialmente gim. Chegou a consumir uma garrafa por dia, trocando depois pelo bourbon por “ordens médicas”, e, enquanto escrevia os livros de Bond, provavelmente numa private joke (a bebida é russa), secava copos de vodca. O drinque pelo qual 007 ficou famoso, o dry martini – “batido, não mexido” – sofreu algumas alterações ao longo dos romances, o que provocou celeuma entre os puristas. Em Casino Royale, o coquetel faz sua primeira aparição encarnado como um coquetel vesper, com três partes de gim Gordon’s, uma de vodca e meia de Kina Lillet, bebida francesa produzida na região de Bordeaux com vinhos e licores cítricos e de quinino. “Bata bem até ficar gelado e jogue uma casca de limão”. O nome vem da personagem Vesper Lynd, “nascida numa noite escura e tempestuosa”, interpretada recentemente por Eva Green. Em Viva ou Deixe Morrer, de 1954, o dry martini já tem seis partes de vodca e uma de vermute. (Um estudo realizado numa universidade canadense revelou que o dry martini batido tem mais antioxidantes do que o mexido. Ponto para Bond.)

A combinação de cigarros e álcool revelou-se mais letal para Fleming do que os planos mais sinistros de Blofeld, o arqui-inimigo de 007 e chefe da organização criminosa SPECTRE. O escritor morreu em agosto de 1964 de ataque cardíaco durante uma visita a Canterbury, após jantar no hotel com amigos. Fleming havia resistido às críticas dos colegas do serviço secreto e à relativa indiferença da crítica literária – alguns chamaram Ian de “sádico” e “esnobe”, e outros diziam que os romances de Bond não continham a ambiguidade moral e a sofisticação dos livros de Graham Greene e John le Carré –, mas não resistiu à debilidade causada por uma vida de excessos, como seu personagem.

Sua viúva não teve do que se queixar: mesmo considerando os livros de Ian “pornografia barata”, o fato é que durante a vida de Fleming foram vendidos mais de 30 milhões de exemplares das peripécias de 007. Nos dois anos após sua morte, as vendas somaram 60 milhões. Mais tarde, outros autores foram autorizados oficialmente a escrever romances de James Bond, elevando o número de títulos para 37. Até Licença para Matar (1989), o 23º longa-metragem da franquia, os filmes de 007 haviam amealhado quase US$ 14 bilhões em valores corrigidos.

Chitty Chitty Bang Bang

Ian e Ann tiveram um único filho, Caspar, que nasceu 12 anos exatos antes da morte de Ian. Em 1962, com a saúde já deteriorada por diversos problemas de pedras nos rins, o álcool e os cigarros, Ian inventou um enredo sobre um carro voador, que lia para Caspar. Essa e outras histórias se tornaram um livro infantil, Chitty Chitty Bang Bang, que virou filme em 1968 e depois até mesmo um musical. A pitada de ironia de Fleming foi dar a uma personagem o nome de Truly Scrumptious, “Verdadeiramente Deliciosa”, bem mais condizente com as mulheres dos livros de Bond. Caspar – que o pai chamava jocosamente de “003 e meio” – era muito inteligente e tinha obsessão por armas de fogo. Morreu de overdose, em 1975.

Após a morte de Ian e de Caspar, Ann começou a beber. Morreu em 1981. Malgrado os altos e baixos da relação com Ian e as diversas amantes do marido – Fleming não poupava nem as mulheres dos amigos –, formaram um casal com muitos pontos em comum. Sem Ann, é pouco provável que Ian Fleming tivesse criado o mais famoso agente secreto de todos os tempos.

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