Alberto Vargas – O gênio que traçava as Pin-ups… Ou nem tanto

Alberto Vargas – O gênio que traçava as Pin-ups… Ou nem tanto

Ninguém pintou uma garota sensual como o peruano (e monogâmico) Alberto Vargas.

Por Walterson Sardenberg Sº

Em 1943, a revista Esquire foi processada por obscenidade. O motivo: as mulheres seminuas pintadas por Alberto Vargas. Uma das testemunhas usou o argumento que, ao longo de décadas, se tornaria uma cantilena para os castos ouvidos daquele que foi um grande artista do século passado — embora raríssimas vezes reconhecido como tal. Disse ela, convicta: as imagens “humilhavam as mulheres”. A Esquire ganhou a ação — e muita publicidade gratuita, claro. Mas Vargas, um cavalheiro, com perdão da expressão, pudibundo, nascido na era vitoriana, sentiu-se insultado. Magoou-se. E olhe que deu a sorte de não ser tachado de porco chauvinista — isso porque a expressão só seria perpetrada mais de duas décadas depois. Ainda assim, não perderia por esperar. No final nos anos 1970, já octogenário e abandonado pelas novas gerações, viu-se tratado por “protopornográfico” pela escritora feminista Andrea Dworkin. Podia ter morrido sem essa. Quem vê hoje algumas das centenas de pinturas retratando lindas mulheres feitas pelo artista peruano logo nota que elas estão tão distantes da pornografia quanto as feministas radicais do bom senso. O.k., as Vargas Girls são sensuais, sapecas, provocantes, glamourosas e têm um corpo ao velho (e, espera-se, imortal) estilo violão — e isso as torna quase matronas perto das modelos de hoje, tão angulosas quanto um obelisco. De qualquer maneira, nunca ofenderam ninguém. A despeito da época, só um moralista empedernido seria capaz de enxergar nessas moças de cintura de pilão alguma campanha insidiosa e orquestrada contra os bons costumes. Elas são um recatado apelo à libido — e parte de seu charme imortal reside justamente nesse limite entre o permitido e o não permitido, e, claro, no espaço reservado para a imaginação.

A própria preferência do artista pelos tons pastel, em vez das cores vivas, pode ser vista como um sintoma desse pudor. As garotas de Vargas, pintadas com perfeição quase fotográfica, insinuantes cintas-ligas e diáfanos baby-dolls, são “apenas” o ponto alto da longa Era das Pin-Ups, originada ainda na Belle Époque e que se estendeu até os anos 1960, quando se tornaram tão desnecessárias quanto uma cinta-liga. Ora, para que pinturas com tamanho esmero realista se até mesmo algumas das mais famosas estrelas do cinema já estavam posando para as revistas masculinas, tão nuas quanto uma estátua grega? A expressão pin-up deriva do verbo pendurar. Servia para definir aquelas imagens de garotas em trajes sumários e olhares traquinas que os borracheiros expunham nas paredes das oficinas. Assim como os slogans e as tiradas espirituosas, as pin-ups foram um fenômeno da cultura pop americana. Espalharam-se em capas de revista, pôsteres, calendários, folhetos, cartas de baralho e até na carenagem dos aviões da Segunda Guerra. Vargas se incumbiria de levá-las aos anúncios da maionese Hellman’s e dos cigarros Old Gold. Não se sabe se apreciava maionese tanto quanto gostava de cães terrier e da música de Beethoven — na companhia de quem gostava de trabalhar —, mas, até seus últimos dias, fumou como uma fornalha.

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Planos ousados
As garotas de papel ainda não estavam com essa bola toda em 1916, quando os borracheiros se ocupavam dos Ford T e Joaquim Alberto Vargas y Chávez desembarcou de um navio em Nova York, fugindo da guerra na Europa, onde havia cinco anos vinha estudando fotografia e línguas, na Suíça e na Inglaterra. Era um rapaz de 20 anos, um fidalgo bem-nascido, poliglota, vestido como um dandy e tímido até não poder mais. Apesar do temperamento retraído, o garotão de feições indígenas e bigode aparado a régua tinha planos bem mais ousados que as paredes das borracharias. Seu alvo eram as galerias e os museus. Para isso, passara dias inteiros no Louvre desenhando estátuas clássicas, com a obstinação de um guerreiro inca. A inspiração vinha da obra de Jean-Auguste Ingres, o versátil pintor neoclássico francês do século 19, capaz de retratar tanto Da Vinci em seu leito de morte quanto donzelas desnudas refesteladas em um banho turco.

Vargas nasceu em Arequipa, uma das mais cênicas cidades do Peru, encarapitada acima dos 2 mil metros e cercada de picos imponentes. Seu pai, Max, era um sujeito moderno. Fez dinheiro como fotógrafo, a ponto de ter bala suficiente para mandar os filhos — e eram seis — estudar na Europa. Moderno, mas nem tanto. Deu-se o direito de escolher a profissão dos pimpolhos. Em Max Jr. anteviu talento para os negócios. Enviou-o para estudar finanças. Para Alberto, o primogênito, pretendia deixar por herança o estúdio e o próprio ofício. O fedelho tinha notável interesse pelo trabalho de retoque fotográfico, embora gastasse mais tempo fazendo caricaturas.

Quando a Primeira Guerra esquentou, o velho Max, aflito, quis trazer o filho de volta. Nova York seria apenas uma escala, antes do desembarque no Peru. O eminente fotógrafo não contava, porém, com três acontecimentos, os mais importantes da vida do rapaz. Primeiro Alberto decidiu dedicar-se à pintura, em vez da fotografia. Depois, apaixonou-se por Nova York, onde resolveu morar, e, em especial, pela dançarina ruiva Anna Mae Clift, do Greenwich Village Follies. Tudo bem rápido — e bem compreensível.

Àquela altura, já vinha desenvolvendo sua técnica de pintura, baseada no lápis, na aquarela (misturava glicerina nas cores) e no aerógrafo — a pistola de tinta usada para dar volume e textura aos desenhos. Nova York, por sua vez, vivia sua escalada como capital do mundo, suscitando, poucos anos depois, o ensaio New York Is Not America, do inglês Ford Maddox – título que mais tarde se transformaria em anônimo e surrado clichê.

Se NY não era os EUA, as garotas de Manhattan pouco tinham a ver com as que Varga conhecera na Europa. Não eram coquetes e sofisticadas, como as parisienses. Mas eram alegres, saudáveis, independentes e de uma sensualidade espontânea. Vargas jamais se esqueceu de um de seus primeiros dias em Manhattan. Era uma adorável manhã de outono. Ao meio-dia, torrentes de garotas começaram a sair dos prédios para almoçar, animadíssimas. “Eu nunca tinha visto nada igual”, recordou em sua autobiografia, escrita em colaboração com Austin Reed, ex-diretor de arte da Playboy, e lançada em 1978. “Havia centenas de meninas com aquele ar de autoconfiança e determinação.” Vargas simplesmente desmaiou.

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Eterna Musa
Anna Mae Clift era uma típica nova-iorquina e, como tal, nascera em outro estado. Viera de uma cidadezinha do caipira Tennessee — assim como Bettie Page, a mais célebre das pin- ups. Ao vê-la na rua, Vargas, maravilhado, resolveu segui-la. Anna caminhava rumo a um ensaio no teatro, onde o forasteiro descobriu o nome dela com o porteiro e esperou-a sair. Sabe-se lá como venceu a timidez, mas conseguiu apresentar-se como pintor e convidá-la para posar. Disse, ainda, que não tinha como pagá-la com antecipação. E não tinha mesmo: o pai cortara-lhe a mesada ao saber da decisão do filho pela pintura e por Nova York. Anna Mae simpatizou com ele e concordou em servir de modelo. Disse-lhe, ainda, que não se preocupasse com o dinheiro. Surgia, assim, a primeira Vargas Girl. Ou ao menos o protótipo.

Muito mais do que isso, na realidade. Anna tornou-se sua inspiração e a maior incentivadora. Namorada? Ele adoraria. Mas cadê coragem para declarar-se? Foram necessários 14 anos de convívio e de, digamos, absoluto respeito (segundo contou Vargas), até que Anna lhe pedisse a mão em casamento. Sim, ela teve de fazê-lo. A partir daí, dividiriam os dias por 44 anos. Não se sabe de nenhuma escapada de Vargas — logo ele, um latino que viu in natura centenas de beldades. O casal não teve filhos. Quando Anna morreu, em 1974, após uma queda terrível na casa onde moravam, o artista definhou. Nunca mais foi o mesmo.

É curiosa a vida particular de alguns dos “obscenos” do século passado. A atriz Mae West, rainha da linguagem fescenina (era assim que se dizia na época), dormia em uma das camas mais monótonas da história. Já o nosso Carlos Zéfiro, o único desenhista brasileiro a fazer jus à palavra underground, não passava de um pacato funcionário público (ou barnabé, para usar um termo caro aos anos 1960). O monogâmico Vargas, por sua vez, tinha planos de tornar-se um novo Ingres antes de ser arrastado para o caminho das pin-ups.

Começou fazendo bicos retocando fotos em um estúdio, ofício que aprendera na infância. Seu primeiro emprego como ilustrador foi em uma casa de modas, a Butterick Paterns. Em paralelo, passou a fazer trabalhos freelance para revistas. Quando vendeu três pinturas por 30 dólares cada, pediu demissão para ganhar a vida como autônomo.

Pouco depois, caiu nas graças de Florenz Ziegffeld, o produtor teatral das Ziegffeld Follies, a versão americana do vaudeville. Para Ziggy, como o chamava — e poucos tinham intimidade para tal —, pintou cartazes e material publicitário ao longo de 12 anos. Posaram para ele Paulette Godard e W. C. Fields, entre outros astros da companhia. Daqueles tempos, guardou para sempre um original, retratando Shirley Vernon. Cada vez mais requisitado, Vargas fez trabalhos para inúmeras revistas, incluindo Tatler, Dance e Harper’s Bazaar.

Em 1934, estava em Hollywood, contratado pela 20th Century Fox. Dali saiu para a Warner, onde deu-se mal ao aderir a uma greve. Jack Warner botou-o para correr sob a acusação de ser comunista. Logo Vargas, que, meses antes, naquele ano de 1939, emocionara-se até as lágrimas ao conseguir a cidadania americana; logo ele, que, durante a Segunda Guerra, colocaria suas garotas sapecas à serviço do Exército, para levantar o moral e atenuar a libido das tropas. Vargas era um ingênuo. De volta a Nova York, poderia muito bem sobreviver com os calendários de pin-ups que vinha pintando para a editora Joseph C. Hoover and Sons e fazer carreira às próprias custas. Deu-se então outro momento decisivo: o encontro com David Smart, o dono e editor da Esquire. A revista havia revolucionado a imprensa americana e Smart, um visionário, honrava o sobrenome — Esperto, em português. Fora solerte o bastante para dar prestígio ao título com textos dos mais brilhantes escritores americanos. Só Scott Fitzgerald, por exemplo, escreveu 43. O sagaz editor sabia, porém, que uma revista popular não sobreviveria apenas com as estrelas do jornalismo e da literatura. Por isso criara seções como a Petty Girls, pin-ups desenhadas por George Petty. O problema: uma vez famoso, Petty passou a fazer mais e mais exigências salariais. Smart encontrou a saída em Vargas. Ao conhecer o pintor, notou que poderia chutar os fundilhos de Petty e propor um contrato extorsivo e draconiano ao seu sucessor. O artista peruano teve de mudar-se de cidade e até de nome: em Chicago, sede da revista, passou a assinar Varga, sem o “s”. Smart era um homem singular.

Essas exigências não são nada quando se sabe que o nome Varga tornou-se propriedade da Esquire, além dos calendários. Smart não fazia por menos. As Varga Girls tornaram-se um sucesso imediato e os calendários passaram a vender como capa de plástico em porta de estádio nos dias de chuva. Agora o artista não pintava mais estrelas do cinema. As mulheres é que se tornavam famosas por terem posado para Vargas, como foi o caso de Irish McCalla, mais tarde a Sheena do seriado de tevê. Até a revista New Yorker, concorrente, deu o braço a torcer e publicou na célebre seção Talk of the Town: “Ele poderia fazer uma garota parecer nua mesmo se enrolada em um tapete”.

Quem se viu enrolado, no entanto, foi o próprio Vargas. Um novo contrato com David Esperto o obrigava a entregar 52 pinturas por ano, uma produção sobre-humana quando se tem em conta que o processo de trabalho do peruano, perfeccionista, exigia três desenhos antes da etapa final. Tudo isso por 1.000 dólares ao mês, uma merreca. Na ponta do lápis são 230,77 dólares por pintura, pagos ao mais conhecido ilustrador daqueles idos. Pior: uma das cláusulas ligava Vargas à Esquire por uma década inteira. Incentivado por Anna Mae, ele entrou com uma ação contra a revista, dando início a uma longa pendenga jurídica que lhe arrasaria as finanças. Como seria de se supor, Smart saiu por cima. Garantiu para a Esquire a propriedade e direito de uso de todas as pinturas assinadas como Varga.

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A era Playboy
Vargas hipotecou a casa, projetou cachecóis, gravatas e até artigos de higiene pessoal. Suas contas aumentaram ao ter de pagar, em 1950, uma cirurgia de mastectomia radical em Anna Mae. Tocou a vida. Fez cartazes de filmes, baralhos, pin-ups para a revista britânica Men Only e foi até jurado de concursos de beleza. Estava no júri do Miss Universo 1958, quando a carioca Adalgisa Colombo foi vice de outra latina, a colombiana Luz Zuluaga. Também criou alguma coisa para Hugh Hefner, o ousado jornalista que deixara a Esquire em 1953 para lançar a sua própria revista, a Playboy. Ainda nos anos 1950, quando lhe pediram uma antevisão de como seriam as mulheres americanas em 2005, Vargas foi profético: “Mais altas, mais magras, fortes e com os pés maiores. Gastarão mais tempo ao ar livre e usarão menos roupas”.

“Menos roupa” foi o que lhe pediu Hugh Hefner quando Vargas passou a ter uma página mensal em Playboy, em 1960. A partir daí seriam 152 pinturas publicadas na revista, incluindo duas capas. Há quem considere este o melhor período das Vargas Girls. Em tempos mais liberados, a carga de erotismo aumentara a ponto de Hefner incentivá-lo a fazer as primeiras pinturas insinuando pelos pubianos — e o artista foi reticente nas primeiras conversas. A maioria dos fãs de Alberto Vargas, no entanto, prefere os seis anos de seu trabalho na Esquire, onde valia mais a sugestão que o explícito.

“Ele representa, na verdade, uma época pré-Playboy“, analisa Edson Aran, ex-diretor de redação da edição brasileira da Playboy. “Até então as revistas com nus eram muito chulas. Se você quisesse ver uma mulher desnuda inspiradora tinha de recorrer ao Vargas. Ele era tão bom que tornou-se atemporal. Nenhum artista de pin-ups virou uma grife, como Vargas.”

O preconceito dos críticos de arte costuma rotular a arte de Alberto Vargas como mera “”ilustração”, ao contrário dos quadros de outro grande pintor realista, do mesmo século, Edward Hopper — que, afinal, fazia obras para as galerias e não para as revistas populares, eis aí o ponto. Já há, porém, alguma tendência a lhe admitir os méritos.

Em 2003, um de seus originais foi vendido por 710,6 mil dólares, em um leilão da Christie’s, de Nova York. Já o Museu Spencer, da Universidade de Kansas — um estado conservador, assíduo eleitor de congressistas republicanos —, tem uma exposição permanente de 150 pinturas de Vargas. O artista soube da iniciativa ainda em vida. Mas um de seus últimos orgulhos, no duro, foi ter feito a capa do LP Candy-O, da banda de rock The Cars, em 1979. “Depois de perder Anna Mae, eu não sabia se estava vivo ou morto”, disse o pintor, então com 83 anos, três antes de morrer, de um derrame cerebral.

David Robinson, o baterista do grupo, teve a ideia e foi, pessoalmente, convidar Vargas. “Havia pinturas por toda a casa, mesmo no chão”, lembrou-se. “Vargas estava fumando um cigarro e deixava a cinza cair sobre as pinturas. Ele colocava os copos de café sobre os desenhos, coisas assim. Já estava um pouco descuidado.”

Ainda assim, a capa — incluída na antologia 100 Best Album Covers, de Storm Thorgerson e Aubrey Powel — é um primor, mostrando uma curvilínea loira vestindo um collant transparente e deitada sobre o capô de um carrão. Duas paixões americanas. A modelo, por coincidência, chamava-se Candy. Candy Moore. Fez carreira, pois o disco vendeu horrores. A gravadora dos Cars, a Elektra, todavia, não ficou satisfeita com a primeira pintura de Vargas. Por “razões de marketing”, o ancião teve de fazer outra versão, eliminando os pelos pubianos e disfarçando a pontiaguda extremidade dos seios. Não passava mesmo de um protopornográfico.

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