Com um punhado de dólares – um deles, furado –, a Itália criou seu próprio
velho oeste, em que mocinhos e bandidos só se distinguiam pela rapidez no saque
Por Celso Arnaldo Araujo
Close nos olhos do mocinho, quase sempre azuis e emoldurados por um rosto sujo, com a barba por fazer. Corta para os olhos do bandido, rútilos de ódio. A câmara retorna, em close ainda mais invasivo, para os olhos do mocinho. E então para outro par de olhos… Espere, não são nem os do mocinho, nem os do bandido. Pertencem a um terceiro personagem, a meio caminho entre mocinho e bandido.
O spaghetti western inventou o “duelo” a três, o “truelo”. E em tempo larghissimo – o mais lento dos andamentos sinfônicos. Tudo embalado por uma música ribombante, com sinos, trompetes, assobios e vozes humanas usadas como instrumentos. Sim, um “duelo” quase operístico, com duração de até seis minutos, intermináveis, mas irresistíveis – que incluíam também closes rápidos nas mãos dos pistoleiros, em direção vagarosa a seus revólveres. A cada close, a mão está mais perto do saque. A música tonitruante só para segundos antes do disparo. Um único tiro, certeiro e mortal. O mocinho nunca desperdiça balas. Quando enfrenta seis bandidos sozinho, um revólver Colt 45 com seis cartuchos será suficiente para dar conta do serviço.
É sintomático que os três exemplares da célebre trilogia de Sergio Leone – Por um Punhado de Dólares, Por uns Dólares a Mais e Três Homens em Conflito –, o suprassumo do spaghetti, se encerrem num duelo com essa coreografia. O primeiro, a dois (Clint Eastwod x Gian Maria Volonté); os demais, a três (Clint x Volonté x Lee Van Cleef; Clint x Van Cleef x Eli Wallach).
O bangue-bangue à italiana não foi um gênero novo, mas um estilo diferente de explorar o que alguém um dia chamou de “o cinema por excelência”: o western dos Estados Unidos. O spaghetti reinaria entre 1964 – seu marco inicial, com Por um Punhado de Dólares – até 1973, quando Henry Fonda, monstro sagrado de Hollywood, fez dupla com o italianíssimo Terence Hill (na pia batismal, Mario Girotti) no ótimo Meu Nome É Ninguém. Um fecho de ouro para um filão que, durante quase dez anos, com sua grandiloquência, seus banhos de sangue, sua estética kitsch e over, consagrou um pastiche, criou ídolos e levou multidões aos cinemas. Depois dele, o Velho Oeste nunca mais seria o mesmo.
Feios, sujos e malvados
A invasão do cinema italiano nos sagrados domínios do faroeste foi um dos ciclos mais bem-sucedidos dos estúdios de Cinecittà – a Hollywood ao sugo. Notavelmente criativa, a produção local viveu uma sucessão de ciclos. No final da Segunda Guerra, a partir de 1945, comédias ligeiras, para exorcizar os traumas de um país que optara pelo lado errado da força, dividiam as telas com as primeiras manifestações do neorrealismo, cinema cru e barato, adequado àquela era de penúria. Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini, filmado secretamente em ruas e apartamentos, enquanto alemães remanescentes da rendição nazista ainda eram caçados pelas tropas aliadas, é a fita que inaugura o movimento.
No fim dos anos 1950, seria a vez de um ciclo de filmes apelidado de Sword and Sandals (espada e sandálias). Entre 1958 e 1964 foram quase 170 títulos. Eram filmes pomposos, mas baratos, falsos épicos, com heróis mitológicos e brutamontes, como Hércules e Maciste, calçando sandálias de gladiador e túnicas de profetas sarados. Até dois futuros ícones do bangue-bangue à italiana puseram um pé no Olimpo dos guerreiros bombados – Giuliano Gemma (em Os Filhos do Trovão, 1962) e ninguém menos que… Sergio Leone (O Colosso de Rodes, 1961), que faria pelo faroeste à carbonara o que Martin Scorsese fez pelos filmes sobre mafiosos.
Estava inaugurada a ponte entre Hollywood e Cinecittà. Por ela transitariam, a partir de 1964, uma coleção de signos cinematográficos e uma fileira de astros americanos que foram se vestir de caubói na Itália. O sucesso internacional de bilheteria dos filmes de espada e sandália despertou o interesse de distribuidoras americanas por um tipo de cinema menos político, menos realista. Com os spaghetti westerns, essa receita chegaria ao esplendor. São filmes tão politicamente incorretos que alguns dos mocinhos, além de não tomarem banho, matavam por dinheiro e batiam em mulher. E tão pouco realistas que italianos vestidos de vaqueiros no deserto de Almeria, sul da Espanha, fingiam estar no Texas. Mas de inglês não falavam nem goodbye – com exceção de alguns americanos egressos da Califórnia, como os citados Clint Eastwood e Lee Van Cleef.
A Itália, é bom que se diga, não foi o primeiro país europeu a nacionalizar o faroeste. Nos anos 1950, houve alguns exemplares do western paella, com diretor e elenco espanhóis. E versões chucrute, baseadas nos livros de Karl May. Mas é na Itália que o gênero vai se destacar num ciclo de quase dez anos e centenas de produções, com uma linguagem narrativa e visual inconfundível. Começava a era dos Ringos, Djangos, Sartanas, Sabatas. E do Homem sem Nome.
Ao estilo Leone
Começou bem. A pedra fundamental é Per um Pugno di Dollari – produzido em 1964, lançado nos cinemas brasileiros em 1965 e só em 1967 nos EUA. Há 50 anos, um grupo de homens erráticos, mas estilosos, se encontrou meio por acaso para iniciar uma fase de ouro. O diretor Sergio Leone tinha sido assistente de Fellini, por sua vez assistente de Rossellini em Roma, Cidade Aberta. Com ótima formação, andava à deriva, depois de se arriscar com épicos espada e sandália. Mas tinha ideias e enorme talento, além de uma dose de fanfarronismo. Sempre contra a corrente do mercado, cismou de rodar um faroeste a seu modo. E o “modo Leone” balizaria o gênero. Seu primeiro mocinho – ma non troppo – seria um americano esquisitão, ex-salva-vidas e instrutor de natação.
Bonitão, calado, Clint Eastwood era um tipão. Fizera algumas pontas em filmes baratos de terror, mas em 1959 achou seu caminho, como coadjuvante na série de TV Rawhide, sobre vaqueiros do oeste. Logo se tornou o ator principal do seriado. Foram 216 episódios, em oito temporadas. Leone era fã de Rawhide e anotou o nome de Clint num caderninho. Para sua primeira incursão no faroeste, ele queria um mocinho taciturno, enigmático – nada do inseguro Gary Cooper de Matar ou Morrer, ou do ético e obsessivo John Wayne de Rastros de Ódio. Clint se encaixava no figurino. E aceitou como cachê um punhado de dólares: 15 mil – pouco para os padrões hollywoodianos, mas nada mau para um filme com orçamento de apenas US$ 200 mil. O vilão seria ainda mais barato: um ator politizado de 31 anos, olhos verdes e um jeitão meio psico. Gian Maria Volonté.
Nos créditos, Volonté apareceria como Johnny Wels. Não ficava bem vilão de bangue-bangue com nome de filme do comediante Totó – aliás, o próprio Leone aparece nos cartazes originais com o pseudônimo Bob Robertson, ele que assinara o roteiro como Roberto Roberti. Dois anos depois, aliás, também um ator com cidadania brasileira se “italianizaria” americanizando seu nome: Antônio de Teffé, nascido em Roma, quando seu pai, o embaixador Manuel de Teffé, servia por lá, virou Anthony Steffen como ator principal de 23 spaghetti westerns. Nenhum memorável. Só receita de bolo caseiro. Pouco antes de morrer, aos 73 anos, em 2004, no Rio, ele explicaria o êxito popular do gênero: “Nossos filmes eram cruéis, duros, verdadeiros; as produções americanas não tinham crueldade”, contou. “Seus atores pareciam manequins, limpos, com roupas impecáveis. Os italianos apareciam sujos, rasgados e cruéis.”
O inevitável pseudônimo americano alcançou até Giuliano “Ringo” Gemma: ele foi um certo Montgomery Wood nos cartazes de O Dólar Furado, outro ícone do gênero, filmado no mesmo ano de Por um Punhado… O sucesso estrondoso – foi o spaghetti western que mais faturou no Brasil, ficando 38 semanas em cartaz – autorizou Giuliano a voltar a ser um italiano da gema e retomar seu nome de batismo. Ironia do destino: o pistoleiro bom moço que ele interpretou (contraponto aos bounty hunters de Clint Eastwood) sobreviveu a duelos em 14 faroestes – e acabou morrendo numa batida de carro num pacato bairro de Roma, em 2013. Gemma tinha 75 anos e ainda atuava. Desarmado, é claro. Assim como Clint Eastwood, nunca foi simpático e fazia um tipo exótico. Giuliano Gemma foi, sem dúvida, o mocinho mais popular dos faroestes italianos. Misturava um pouco da figura atlética de Burt Lancaster, seu ídolo, com a dignidade de Gary Cooper. Mas foi uma exceção na galeria de “heróis” al dente. E a concepção de O Dólar Furado passou longe da violência que seria a tônica do bangue-bangue à italiana.
O diretor Giorgio Ferroni quis fazer um faroeste nos moldes dos americanos. E a canção-tema, de autoria de Gianni Ferrio, inesquecível, colaborou para o estouro do filme, tornando-se um prefixo musical dos faroestes italianos.
Cigarros partidos em guimbas
Ah: a fabulosa trilha sonora de Por um Punhado… é de um certo Dan Salvio. Quem? Nome fajuto do maestro Ennio Morricone. Colegas de terceira série do colégio, Leone e Morricone estabeleceriam uma parceria tão fundamental quanto a de Fellini com Nino Rota. As trilhas do compositor romano para os cinco faroestes de Leone e para os outros 14 que ele musicaria equivalem a personagens sonoros fundamentais. Sem elas, seriam outros filmes, muito inferiores.
O estilo Morricone se tornou o padrão do gênero. Ele faria extraordinária carreira também sem Leone. Trilhas como as de Cinema Paradiso e Os Intocáveis marcaram para sempre. Curiosidade: aos 87 anos, o maestro acaba de assinar a trilha do novo bangue-bangue de Quentin Tarantino, Os Oito Odiados – mais uma homenagem cult ao spaghetti western, do qual Tarantino é rato de celuloide. Outra curiosidade: o Homem sem Nome, figura de Eastwood que se transformaria em estereótipo do faroeste italiano, tinha um nome de batismo em sua estreia. Nos créditos de Por um Punhado…, seu personagem aparece como “Joe, o estranho”. Estranho por ser esquisito – não por ser anônimo.
A personalidade do “mocinho” de Eastwood estava definida por Leone no roteiro, mas foi Clint quem moldou fisicamente o personagem. Comprou um par de jeans pretos numa loja de esportes em Hollywood Boulevard, o chapéu em Santa Mônica e cigarros pretos, que ele, um não fumante, cortou em três pedaços para torná-los tocos toscos. Só o seu poncho veio dos figurinistas. O enredo de Por um Punhado…? O mesmo de 70% dos bangue-bangues à milanesa: um pistoleiro mercenário, sem biografia, tirando vantagem de dois grupos em confronto na cidade. Parece Yojimbo, o Desafio do Samurai? Lógico. Akira Kurosawa foi um dos inspiradores de Leone. O resultado, brutal e antirromântico, os closes absolutos, batia de frente com os faroestes – mas era tudo o que o público queria. Os US$ 200 mil se transformaram rapidamente em 2 milhões.
Entre 1964 e 1973, seriam produzidos perto de 600 spaghetti westerns, dos quais apenas uns 20 seriam memoráveis. Vários arquétipos foram sendo introduzidos, como personagens mexicanos, com pretensão revolucionária, em busca de liberdade e justiça para seu povo – como no ótimo O Dia da Desforra, em que o bandoleiro interpretado por Tomas Milian convence um pacato professor de história (Volonté) a aderir à sua causa de violência. Mexicanos? Eles foram ficando cada vez mais bandidos e menos “socialistas”. Um intérprete se destacava na pele desses “vilões-tacos”: Fernando Sancho. Se você já assistiu a um spaghetti western, já viu Sancho, que atuou em 53 deles. Mulheres? Se mexicanos eram meliantes, na sua maioria as mulheres tinham papel de coadjuvantes, como prostitutas ou viúvas. Claudia Cardinale foi uma exceção em Era uma Vez no Oeste, o quarto faroeste de Leone e talvez o mais reverenciado dos spaghetti, com elenco hollywoodiano, contando Henry Fonda, Charles Bronson e Jason Robards. Um clássico.
Chega de faroestes italianos
Era uma Vez…, filmado em 1968, tem um prólogo marcante. Charles Bronson chega de trem à estação, onde já o esperam três matadores. Leone “viajou”: que tal se esses três bandidos que seriam abatidos por Bronson fossem interpretados por Clint Eastwood, Lee Van Cleef e Eli Wallach – o trio de ferro que estrelara o filme anterior de Leone, o também fabuloso Três Homens em Conflito? Seria, é claro, uma cena cult – e o cachê de Clint, por essa ponta, duas vezes maior do que o que recebera no primeiro filme. Leone já o incorporara ao orçamento. Mas Clint era apenas cool, não cult. Disse ele, curto e grosso: “Sergio, no more Italian westerns”. Com isso, Leone deixou de lado Van Cleef e Wallach. Os três bandidos mortos no início de C’Era Una Volta Il West acabaram sendo dois americanos do time B, Jack Elam e Woody Strode, e o canadense Al Mulock. Clint continuaria fazendo westerns – mas os seus próprios, e maravilhosos, como o oscarizado Os Imperdoáveis ou O Justiceiro Solitário.
Se Por um Punhado de Dólares tem uma certa vulgaridade narrativa, Por uns Dólares a Mais, o segundo Leone, traz cenas que consagraram o cinismo criativo do diretor, como a do coronel Mortimer (Van Cleef, um grande tipo que faria carreira no gênero como a do também mitológico Sartana) riscando o fósforo na corcunda do assustador bandido Wild (Klaus Kinski) sem que este, no limite do ódio, possa reagir. A morbidez de algumas das sequências de Por uns Dólares a Mais delinearia para sempre o gênero.
Em 1973, o faroeste à italiana, depois de dezenas de pastiches, cada vez mais malfeitos, já sem munição, deixara de ser uma mina de ouro. Mas a série Trinity, sua versão satírica, iniciada em 1970, ainda fazia muito sucesso, com a dupla Terence Hill e Bud Spencer. Leone, que já estava em outra, ficou com ciuminho. E, num golpe de mestre – agora como produtor, não diretor –, retornou ao gênero. Chamou o amigo Tonino Valerii para dirigir e Terence “Trinity” Hill para estrelar. No lugar de Bud Spencer, outra jogada de gênio: Henry Fonda, o vilão sombrio de Era uma Vez no Oeste.
Aqui ele é Jack Beauregard, envelhecido pistoleiro que quer se vingar da morte do irmão. O ano é 1899 e o mundo focalizado no western está se extinguindo. Bem, o gran finale é Beauregard enfrentando um bando de 150 cavaleiros armados até os dentes. A marca de Leone, é claro, está por toda parte, a começar pela música de Morricone. Um quase épico cômico. No mundo cinematográfico que viria depois, os mocinhos resolveriam a parada não com um Colt 45, mas com as próprias mãos. Era a vez de Bruce Lee e do ciclo dos filmes de kung fu, também conhecidos como “Por um Punhado de Ienes”.