Nosso repórter cria coragem, faz um curso de paraquedismo e conta, em detalhes, como foi o maior tombo de sua vida
TEXTO Henrique Skujis, de Boituva (SP)
RETRATOS Octavio Brasil
Minha vida está nas mãos de Deus. Descalço e de camiseta regata, ele se ajoelha diante de um emaranhado de panos e cordas. Parece rezar. Dobra, puxa, amarra, enlaça, aperta. O intrincado equipamento colorido espalhado no tapete vermelho vai sendo encurtado, abreviado, encolhido. Em 15 minutos – milagre – a maçaroca vira uma mochila compacta, daquelas de colocar nas costas. O calor é infernal no galpão do Centro Nacional de Paraquedismo, na cidade de Boituva, a 115 quilômetros de São Paulo. Deus sua. Sabe de seu poder. De sua responsabilidade. Os mortais à sua volta assistem ao ritual fingindo desinteresse, embora bastante desconfiados. Mas é preciso ter fé, aquela impalpável convicção de que tudo vai dar certo. A primeira vez que Deus dobrou um paraquedas, há dois anos, foi com as mãos trêmulas. Mas certeiras. Quando viu o avião levantar vôo com sua obra inaugural nos ombros de um discípulo, tremeu. Hoje mira o céu seguro de si.,
Vanderlei de Deus Brasileiro, 32 anos, à espera do segundo filho, tenta me tranquilizar. Vem com a homilia de que se lançar de um monomotor a 4 mil metros de altura, despencar em queda livre por 45 segundos, puxar uma corda e torcer pela abertura do paraquedas é mais garantido do que dirigir pelas estradas brasileiras, jogar bola ou praticar qualquer outro esporte radical. Examino o sobe-e-desce das aeronaves. A cada decolagem, uma dúzia de rostos tensos embarca no Cessna 208 Caravan I de prefixo PT-OGF. Às 11h é a minha vez. Visto um macacão azul de náilon e recebo uma aula com dez minutos de duração. As instruções de Marcos Terraguar, o Marcão, paraquedista com 5 mil saltos nas costas, são simples. “Na hora de saltar do avião, coloque a cabeça para trás, apóie as mãos no peito e encaixe as pernas entre as minhas”, explica. “Depois, abra os braços e divirta-se.” Ainda em terra, é feita uma pequena simulação das manobras. “Pronto?”
QUANTO MAIS ALTO MELHOR
“Embarque imediato”, convoca a voz no alto-falante. Olho para Deus. Ele está de costas. Parece rir enquanto proseia com outros dois dobradores da Azul do Vento, uma das mais de 20 escolas de paraquedismo fincadas em Boituva. A cidade virou meca do esporte desde que meia dúzia de saltadores passou a usar a pista de pouso remanescente das obras de construção da rodovia Castello Branco nos anos 60. Embarco. O avião decola da pista de terra vermelha e ganha o céu. Surpreendentemente, o nervosismo diminui conforme o chão se distancia. Há uma inexplicável sensação de que “quanto mais alto melhor”. Afinal, sem meias palavras, o maior medo de quem salta de paraquedas é se espatifar no chão. Sobre essa trágica e remota possibilidade ninguém fala. Parece haver um código de conduta implícito no ambiente dos paraquedistas. Mas, se não há verbalização dessa agonia, sobram tecnologia, cuidados, treinamentos e alto-astral para reduzi-la ao mínimo possível. Talvez por isso o número de praticantes não pare de aumentar (no dia em que estivemos lá, foram mais de 200 pessoas). E são raríssimos os casos de marinheiros de primeira viagem que desistem do salto dentro do avião.
Pessoas, carros, casas e prédios viram pontos camuflados no meio da paisagem. Até a Castello Branco some. Brincadeiras tentam descontrair o clima a bordo do Cessna. O chão está muito longe, a 4 mil metros, altura equivalente a dez finados World Trade Centers empilhados um sobre o outro. “Boa sorte! Boa sorte!”, desejam os novatos entre si. O motor do avião é desligado. O Cessna plana. A porta se abre. O vento e sua algazarra invadem o interior. Uma última instrução: “Deixe sempre minhas mãos livres”, berra Marcão no meu ouvido. Essa é uma das preocupações dos paraquedistas em saltos duplos. Se apavorado, o debutante pode se agarrar ao instrutor ou, Freud explica, fechar o corpo na posição fetal em busca de abrigo e complicar a vida da dupla. Sem cerimônia, corpos lançam-se vazio abaixo. Estico o pescoço e pela janela os vejo desaparecer sugados pela gravidade a uma velocidade fabulosa. Marcão cutuca o meu ombro. “Vamos lá. É a tua vez.” Sigo as instruções. Apesar de as pernas parecerem pesar 1 tonelada, caminho de cócoras até a imensa abertura na fuselagem. O temor vai às alturas, atinge o ápice. Estou a meio passo do céu azul. Lá embaixo vejo uma delgada camada de nuvem branca. Muito mais lá embaixo, a Terra, retalhada em plantações, morros e pequenas cidades. Penso em Deus. Ele dobrou o paraquedas como um paraquedas deve ser dobrado?
UM POUSO NA MOSCA
Cabeça para trás, mão no peito e lá vou eu. Deixo-me empurrar para o nada. Começo a rodopiar. Por 5 ou 6 segundos, Terra e céu invertem seus papéis. A euforia e a loucura causadas pela queda livre espantam as idéias ruins. O corpo despenca a 100, 150, mais de 200 quilômetros por hora. Uma Ferrari em direção ao muro. A adrenalina invade a corrente sanguínea, os batimentos cardíacos aumentam. O pavor desiste. Dá uma de medroso e some. Deito-me no ar com a barriga para baixo e abro o peito para vencer a resistência. Sou tragado pela gravidade. Grito. Esqueço que meu amanhã ainda depende do sucesso da abertura do paraquedas. Esqueço Deus. O chão está tão longe que sobra tempo para curtir a queda livre. Octavio Brasil – instrutor, fotógrafo e cinegrafista – surge diante de mim. Mexe os braços e pede que eu olhe para as câmeras presas à sua cabeça. Tarefa difícil. Estou mais interessado em ver a paisagem, em olhar para todas as direções e sentir todas as nuances do maior tombo da minha vida.
Um repuxo repentino no corpo é sinal inequívoco de que Deus é mesmo brasileiro e mandou bem. A 1.500 metros do chão, as cordas meticulosamente manipuladas por ele rompem a mochila, dão à luz uma imensa lona azul e confirmam os princípios físicos propostos por Leonardo da Vinci em 1483 – o italiano foi o primeiro a esboçar o desenho e comprovar, pelo menos com cálculos matemáticos, a eficiência do paraquedas. A engenhoca se abre perfeitamente sobre minha cabeça. Em vez de despencar, passamos a planar. Tudo fica mais lento. É hora de curtir o visual e a possibilidade de voar sem ter nascido pássaro. Marcão inicia o city-tour. “Aqui embaixo é Boituva. Lá é Iperó. Mais para lá é Tatuí.” Um puxão nas cordas presas à sua mão e damos um giro de 180 graus. “Agora você vê Cerquilho, Tietê e Porto Feliz.” Com o suporte do instrutor, arrisco pilotar. Basta manejar as cordas para domar a velocidade e mudar a rota da descida. Falando nisso, onde está o local do pouso? Marcão reassume o comando, localiza o alvo e faz ousadas manobras para ajudar na perda de altitude. Dá uma leve tontura ver o chão crescer como salvação ou sepultura irrevogável. Mas não há motivo para pânico. A aproximação é tranqüila e o pouso, suave. Com os pés na terra, resta pouco a falar. Uns gritam, outros balbuciam interjeições emocionadas, sons, palavrões. Feliz da vida, me faço apenas duas perguntas: por que não tinha saltado antes e quando terei coragem para repetir a dose.
O caminho das nuvens
Para fazer um salto duplo não é preciso curso prévio. Basta aparecer na hora agendada para ouvir as explicações do instrutor, vencer o medo e embarcar no avião que o levará aos 4 mil metros de altura. Saltos individuais, no entanto, requerem um curso teórico de dez horas. Depois são realizados sete saltos nos quais o aluno vai com o seu próprio paraquedas, mas em companhia de dois instrutores que saltam ao mesmo tempo para estabilizar o aluno, acompanhar o exercício proposto e agir em caso de necessidade. Se após essa bateria os instrutores considerarem o aluno apto, ele pode começar a fazer vôos solos. Para virar instrutor, o caminho é bem mais longo: são precisos 500 saltos.