Uma viagem de Little Rock, terra de Clinton, a Foz do Iguaçu a bordo de um dos mais desejados jatos executivos, o Falcon 7X.
Por Luiz Maciel
A parte mais difícil foi pular da cama às 4 e meia da manhã para não perder a decolagem, marcada para duas horas depois. Esse intervalo de tempo – o mínimo recomendado para um passageiro de voo comercial fazer o check-in sem tantos atropelos, já no aeroporto – seria mais do que suficiente para cada um de nós arrumar sua mala, tomar café e entrar na van que nos deixaria à porta da aeronave, na pista particular da fábrica da Dassault na modorrenta Little Rock, capital do estado de Arkansas e terra natal de Bill Clinton.
Quem nos recebe ao pé da escada é o sorridente comandante Dave Belastock, desmanchando-se em gentilezas com os passageiros. Ele espera pacientemente que todos os caronas – sete jornalistas brasileiros – se acomodem nas ultraconfortáveis poltronas de couro para só então pedir que lhe emprestem os passaportes por um minuto. Três ou quatro minutos mais tarde Dave está de volta, para entregar os documentos. E isso é tudo. Estamos prontos para decolar.
Ninguém vasculhou minha bagagem, escaneou meu corpo à cata de algum objeto perigoso ou me obrigou a tirar os sapatos para comprovar que eu era um passageiro inofensivo. A única fila que peguei antes do embarque foi mesmo a do café, ainda no hotel de Little Rock, aguardando a vez de prensar um waffle. A sensação era a de que estava ali para fazer um voo curto e agradável até a cidade vizinha, cruzando um ou dois rios, no máximo, sem sair do inexpressivo estado do Arkansas. Mas não. Meu destino era a brasileira Foz do Iguaçu, a 8 mil quilômetros de distância, ou 4,3 mil milhas náuticas, como prefere a comunidade aeronáutica. Uma viagem prevista para durar nove horas, sem escalas.
O avião que me deixaria na terra das cataratas era um Falcon 7X, jato executivo da Dassault que pode levar até 16 passageiros, mais três tripulantes, de um continente a outro. Com 11 pessoas a bordo, no total – exatamente a lotação do nosso voo –, o 7X tem autonomia de 11 mil quilômetros, suficiente para cobrir de uma pernada só, por exemplo, os 9,4 mil quilômetros de São Paulo a Paris, com boa margem de segurança. Era o que o empresário Abílio Diniz fazia, por sinal, quando tinha de discutir os destinos do Grupo Pão de Açúcar com os antigos sócios franceses. Abílio e outros 14 felizardos brasileiros têm um 7X para chamar de seu – um brinquedinho cotado em cerca de 51 milhões de dólares, fora os impostos.
A maior vantagem de ter um jato particular, claro, é a liberdade de levantar voo para fazer o próprio roteiro, sem depender de rotas e horários estabelecidos pelas companhias comerciais. O tempo que se ganha no embarque e desembarque é outro luxo admirável – três horas, no mínimo, o que significa que a cada três viagens internacionais economiza-se, em média, o tempo que se passaria a bordo em um quarto voo. Enquanto piloto e copiloto cuidam dos preparativos e da burocracia, os passageiros de um jato executivo são poupados de filas e aborrecimentos. Um jato do porte do 7X, com 23,4 metros de comprimento por 26,2 metros de envergadura, tem ainda a seu favor a flexibilidade de decolar e pousar em pistas menores e menos congestionadas, como as do Campo de Marte, em São Paulo, e do aeroporto London City, em Londres. O que também economiza mais tempo nos deslocamentos.
Nenhuma dessas vantagens pode ser compensada pela mordomia da primeira classe nos voos comerciais, cujos passageiros, por mais prioridade que tenham no atendimento, devem cumprir o mesmo ritual de embarque dos mortais comuns que viajam espremidos na classe econômica: check-in/despacho de bagagem/espera pela chamada do voo/fila para entrar no avião. Além disso, os pro-prietários de jatos executivos estão à vontade para colocar a bordo tudo o que quiserem em termos de conforto, design e rapapés, suplantando em muito os luxos oferecidos nos voos comerciais. Podem encomendar cama de casal, banheiro de mármore e cozinha gourmet, por exemplo, e contratar um chef para servir exatamente o que gostariam de comer e beber. Podem até pedir para instalar um chuveiro a bordo, algo impensável num avião de carreira – neste caso, porém, devem estar dispostos a adiar por seis meses a entrega da aeronave, pois a instalação de um reservatório maior para a ducha exige um sistema especial para evitar o congelamento da água.
Como os voos em jatos executivos não são tão demorados, muito menos cansativos, raros compradores consideram o chuveiro um item de bordo essencial. “Nenhum dos clientes brasileiros, que estão entre os mais exigentes do mundo, pediu um até hoje”, conta Carlos Petiz, gerente de vendas da Dassault para o Brasil. Acostumado a acompanhar os compradores de Falcon até o escritório da companhia em Nova Jersey (para a escolha dos padrões da decoração interna dos aviões), e depois até Little Rock (onde seus pilotos particulares se familiarizam com a cabine de comando), Petiz afirma que uma boa relação entre a autonomia de voo, o conforto e o desempenho das máquinas voadoras é sempre o que mais conta na decisão de compra desse tipo de aeronave. “Nosso grande diferencial é a performance”, garante. “Os Falcon têm asas mais aerodinâmicas e consomem até 35% menos combustível do que a concorrência.”
O pulo do gato dos Falcon, reconhecido pelo mercado, é mesmo o design inovador, que a cada novo projeto incorpora soluções testadas e aprovadas em aviões militares construídos pela própria Dassault. “A divisão militar, que já foi nosso principal negócio, hoje responde por 30% do faturamento da companhia”, afirma Andrew Ponzoni, diretor de comunicações do grupo Dassault. “Mas continua sendo fundamental no desenvolvimento de equipamentos e sistemas aeronáuticos cada vez mais eficientes.” A fábrica francesa, que nos anos 1970 forneceu os lendários Mirage para a Força Aérea Brasileira, hoje produz os jatos Rafale, que o Brasil só não comprou na mais recente concorrência da Aeronáutica por serem bem mais caros do que os suecos Gripen NG. Além das asas revolucionárias, outro legado do Rafale para os Falcon foi a substituição do tradicional manche por um joystick, bem ao gosto dos pilotos modernos.
Se a estrutura do jato é resultado de uma sofisticada obra de engenharia assinada pelo fabricante, por dentro a aeronave tem a cara do dono. O comprador escolhe pessoalmente a configuração, cores e materiais que serão usados internamente, o que acaba dividindo a produção do jato em duas etapas distintas: a da montagem do avião propriamente dito, com a fuselagem recebendo motores e demais equipamentos e sistemas essenciais ao voo, e a fase do acabamento personalizado, refletindo em minúcias o gosto do freguês.
No caso das máquinas da Dassault, a primeira etapa é cumprida na fábrica de Bordeaux, na França, e a segunda em Little Rock. Bordeaux porque se trata, afinal, de uma companhia francesa; e Little Rock porque os Estados Unidos representam metade do mercado mundial de jatos executivos. Um mercado, diga-se, que deverá movimentar cerca de US$ 250 bilhões nos próximos dez anos. Serão entregues mais de 9 mil aviões, segundo um estudo da Embraer – que tem tido sucesso com seus novos aviões civis de pequeno e médio porte, das linhas Phenon e Legacy. A fabricante brasileira se prepara para entrar no segmento de jatos privados de longo alcance, o mais rentável da aviação executiva, brigando diretamente em mais esse nicho com a Dassault, a canadense Bombardier (fabricante do Global 6000 e do futuro Global 7000, com autonomia de 13.520 quilômetros) e a americana Gulfstream (que faz o G650 e o recém-lançado G650ER, com alcance recorde de 13.890 quilômetros).
Na fábrica da Dassault em Little Rock, a rotina é bem menos agitada do que a da linha de montagem em Bordeaux. O que mais se vê são funcionários debruçados sobre alguma peça que precisa ser cortada, esculpida, polida, revestida ou pintada, para então ser testada e instalada com precisão. É um trabalho artesanal, de paciente dedicação aos detalhes, muito parecido com a fase final de produção de uma lancha de porte, depois que sai de cena o time encarregado da parte mais pesada, de moldar e equipar a embarcação. Os materiais são sempre os de melhor qualidade. O couro, por exemplo, vem do mais confiável fornecedor italiano. Mesmo assim, metade dele é descartada, por causa de imperfeições não identificáveis à primeira vista, mas detectadas em testes mecânicos. As máquinas ali estão to-das a serviço do controle de qualidade, como aquela capaz de se-car, em questão de minutos, as sete demãos de verniz em peças de madeira, evitando o que poderia levar dias num processo natural.
Os primeiros exemplares dos dois novos modelos da Dassault, os jatos 5X e 8X, chegados poucos meses atrás em Little Rock, permanecem incompletos nos hangares, só devendo ser entregues aos compradores a partir do final de 2016. A grande inovação do 5X é a amplidão da cabine, que tem 1,98 metro de altura, a maior desse segmento. O 8X destaca-se pela autonomia, esticada para 11.945 quilômetros, suficiente para voar de São Paulo a Chicago sem reabastecimento. O primeiro – que no futuro será embrião de aeronaves maiores – sai por US$ 45 milhões; o segundo, por US$ 60 milhões. Enquanto eles não decolam, o 7X, lançado em 2007, continua sendo um dos jatos mais cobiçados do mercado.
O “nosso” 7X voava para o Brasil para ser exposto na Labace, a feira de aviação executiva que acontece todos os anos em São Paulo, o que explica a carona aos sete brazucas. A configuração interna do jato era uma das sugestões mais aceitas pelos compradores, e de fato bastante prática e confortável: dois pares de poltronas na parte dianteira, dispostas uma de frente para a outra; quatro poltronas no centro, separadas por uma mesa maior, para compartilhar refeições ou reuniões; e dois sofás na parte de trás, que podiam ser unidos para formar uma cama de casal. Havia ainda dois banheiros, cozinha e um bagageiro nos fundos, além de vários nichos para guarda-trecos e tomadas para plugar celulares e laptops.
E havia, sobretudo, a simpatia de Nancy Gravina, a comissária capaz de entender com um olhar o que cada um de nós precisava ou queria, para atender prontamente. Logo depois do almoço, quando a turma do bloco do meio já estava meio sonolenta, ameaçando avançar os pés sobre a mesa, Nancy surgiu delicadamente e – enquanto endireitávamos o corpo imaginando que ela pudesse dar, polidamente, uma bronca nos jornalistas folgados – acionou uma alavanca que fez baixar o tampo até a altura mais confortável para que todos pudéssemos acomodar as pernas. Grande Nancy! Ela nunca deixava nossas taças de vinho vazias nem ficava mais de uma hora sem oferecer um tira-gosto ou um docinho. Os vinhos, magníficos, eram da própria Dassault (sim, eles também produzem a bebida, e muito bem, em St-Émilion, na região de Bordeaux) e da vinícola Coppola (sim, do diretor de cinema Francis Ford), que fica no Napa Valley, na Califórnia.
A entrada no Brasil por Foz do Iguaçu era mais um pormenor para tornar a viagem a mais agradável possível. Não por causa das cataratas – isso também, pois pudemos sobrevoar demoradamente as quedas antes de pousar, para deleite da turma toda –, mas porque ali o registro da aeronave no país e a nossa passagem pela alfândega seriam muito mais tranquilos do que em São Paulo. De fato, chegamos no final da tarde em Foz e encontramos os funcionários todos da Receita Federal à nossa disposição. As malas chegaram imediatamente, trazidas pelos próprios tripulantes.
Mas o melhor de tudo foi desembarcar com o corpo leve, sem cansaço algum, graças ao perfeito sistema de pressurização do jato. Ninguém pisou em terra firme com as pernas inchadas, louco para tomar um banho e se afundar na cama. Ao contrário. A maioria foi se refrescar na piscina do hotel – o único instalado dentro do Parque das Cataratas, por sinal, completando a coleção de exclusividades vivida naquele dia. Houve até quem se sentisse animado a ver de perto as quedas-d’água antes do anoitecer.