Debbie Harry foi a primeira mulher a se tornar um símbolo abertamente sexual do rock
POR DANIEL BENEVIDES
Marilyn Monroe tinha 22 anos em 1º de julho de 1945. Estava começando a carreira como pin-up, depois de um período trabalhando numa fábrica para ajudar no esforço de guerra. Ainda demoraria seis anos para pisar os primeiros degraus da fama no cinema. Ela mesma acostumada a uma vida em orfanatos, poderia perfeitamente ter tido uma filha nesse dia e a destinado para adoção. Diz a lenda que essa filha, caso existisse, seria ninguém menos que Deborah Ann Harry, a Debbie Harry do Blondie, banda que surgiu no punk novaiorquino e se tornou das mais populares do planeta no final dos anos 1970 e começo dos 80.
A própria Debbie desmente a versão, mas afirma, com um toque saboroso de mistério, brincando com as entrelinhas do destino, que se sente filha espiritual de Marilyn. Especialmente da Marilyn falsamente ingênua e divertida de filmes como Quanto Mais Quente Melhor e O Pecado Mora ao Lado.
Se considerarmos a árvore genealógica da pop art, representada pelas serigrafias de Andy Warhol, as duas estão, de fato, ligadas, ambas retratadas pelo artista no auge da beleza e sensualidade, com os mesmos cabelos oxigenados, lábios carnudos, provocantes.
A diferença fundamental está na atitude. Se a deusa de Hollywood era generosa e alimentava fartamente as fantasias masculinas, a cantora e compositora do grupo Blondie (também atriz nas horas vagas) sempre fez o tipo cool e exigente, como se dissesse: “Você pode me ver, mas jamais me tocar” (na perfeita avaliação de um jornalista inglês).
De mãe desconhecida — ou muito famosa —, Deborah Harry foi adotada ainda bebê em Miami por um casal de comerciantes. Logo a família se mudou para uma cidadezinha em Nova Jersey. Anódina, Hawthorne foi o palco perfeito para que Debbie se destacasse. Era a mais linda na escola, e também a mais esquisita, de longe. Desde cedo, aquela que se tornaria o primeiro símbolo abertamente sexual do rock, precursora de cantoras como Madonna e Katy Perry, cortava e pintava os próprios cabelos, e usava maquiagem das formas mais extravagantes. Era também criativa nas roupas, o que sempre fez dela uma favorita de estilistas e gurus da moda.
Cansada do provincianismo local, bandeou-se para Nova York, onde se adaptou como pôde. Entre outras coisas, foi coelhinha do Clube Playboy, garçonete no lendário Max’s Kansas City, bar onde tocavam bandas como Velvet Underground e Alice Cooper, go-go-dancer e secretária da rádio BBC. Já como cantora e percussionista, passou brevemente por um grupo de folk chamado The Wind in the Willows, com o qual lançou um disco em 1968. Sua imagem daquela época é muito diferente daquela com que seria mundialmente conhecida a partir de 1976. Cabelos lisos, compridos e castanhos emolduravam um rosto angelical, redondo como a lua, de olhos azuis e doces, e boca de menina. Em suma: linda, mas nada marcante. Talvez por isso ela brigasse com as amigas que ameaçassem revelar seu passado hippie. A banda não passava de uma cópia malfeita de grupos como The Mamas and the Papas e não foi adiante.
Curiosamente, Debbie guarda com carinho as lembranças de seu uniforme com orelhas compridas, decote imenso, gravata borboleta e pom-pom no bumbum. Lembra-se de como era preciso ser habilidosa para equilibrar uma bandeja de prata cheia de copos de uísque em meio a tantos executivos. E revela que sonhava com esse emprego desde adolescente, por conta de um amigo bonitão dos pais que se gabava, com charme, de frequentar os clubes de Hugh Hefner.
Mas foi mesmo no balcão do Max’s Kansas City que sua persona se formou: os cabelos espetados, assimétricos, as roupas rasgadas, recortadas, coladas no corpo, a maquiagem exótica, a postura desafiadora, com seu olhar intenso, que se espelha nos bicos dos seios, insinuando-se vivamente por trás do tecido. Em pouco tempo já era figura carimbada no underground de Nova York. Carimbada e muito, mas muito desejada. Por meninos e meninas.
Foi nessa época que teve duas experiências traumáticas. A primeira delas com um namorado baterista. Como muitos naquele meio que não conhecia limites, ele morreu de overdose de heroína, droga que ela mesma usou por um bom tempo. O luto foi pesado. Quase a derrubou. Mas Debbie sempre foi dura na queda.
Certa noite ela estava sozinha numa esquina do Lower East Side à espera de um táxi para ir a uma festa dos New York Dolls, banda sensação do momento, que influenciou todo o punk e a new wave. Um carro surgiu e o motorista ofereceu carona. Do alto de seus saltos e do corpo perfeito, ela recusou. O sujeito deu mais duas ou três voltas no quarteirão, renovando o convite. Eram três da manhã, Debbie resolveu entrar no veículo. Assustada, logo viu que a porta não tinha maçaneta e que o sujeito, apesar de belo e charmoso, exalava um cheiro fétido. Enfiou então o braço por uma fresta na janela e abriu a porta por fora. O motorista sinistro ainda deu uma guinada para impedir sua fuga, mas ela conseguiu sair rolando pelo asfalto. Anos depois, Debbie o reconheceu na TV: era Ted Bundy, assassino confesso de 30 mulheres.
Há quem duvide da história. Mas decerto ninguém duvida de que ela teria sangue frio para reagir assim. O termo cool parece mesmo ter sido criado para Debbie. Mais ou menos nessa época formou um trio de meninas chamado Stilettoes. Usavam roupas mínimas de cores gritantes e adereços curiosos. As músicas tinham humor e selvageria, algo entre o punk e o pop dos anos 60. Título de uma delas: “Dracula, what did you do with my mother?” (“Drácula, o que você fez com a minha mãe?”). David Bowie foi vê-las uma vez. Assim como Chris Stein, um sujeito de sobrancelhas grossas, que seria amante de Debbie, guitarrista e colíder do Blondie, além de amigo pela vida inteira.
O pulo para o Blondie veio com ele. O nome, como se pode imaginar, surgiu da forma como os homens a chamavam: “Ei, loirinha”. Em 1976, depois de se tornarem assíduos nos palcos do Max’s e do não menos lendário CBGB’s, gravaram o primeiro disco, sem sucesso. Abriram shows para Iggy Pop e Bowie. Debbie saiu numa fotonovela porno-light com Joey Ramone, dos Ramones, na cama. A febre pela banda começou mesmo na Austrália e na Inglaterra, antes de 1978, mas com força total naquele ano. O terceiro disco, Parallel Lines, foi o turning point. O visual punk e kitsch cedeu espaço para uma Debbie mais sofisticada, sensual, madura. Ela estava, afinal, com 33 anos.
Era o momento da ascensão. A música “Heart of Glass”, com sua levada discothèque, atingiu o topo nos dois lados do Atlântico. Representa bem o novo espírito do grupo. Despegado das raízes no underground, o Blondie abraçou o sucesso sem culpa, mas com muita ironia. Nos dois discos seguintes vieram outros megahits, como “Call Me” (que está na trilha do filme Gigolô Americano, produzida pelo midas Giorgio Moroder), “The Tide is High” (regravação um reggae jamaicano de 1967), “Atomic” e a surpreendente “Rapture”, tida como o primeiro rap das paradas. Debbie era capa em todas as revistas, da Rolling Stone à Penthouse (vestida). Nesta última, declarou que achava o sexo a coisa mais importante do mundo, e que se sentia honrada de ser alvo de tanto desejo masculino.
No começo dos anos 1980 a banda afundou em problemas de todo tipo e acabou se separando (retornaria muitos anos depois, em 1999, com o hit “Maria”). Debbie, agora Deborah, continuou em carreira solo e, mais tarde, juntou-se ao grupo The Jazz Passengers. Ao mesmo tempo, retomou uma errática carreira no cinema, seu sonho de menina. Tem pelo menos dois ótimos filmes no currículo, ainda que não sejam para todos os gostos: Videodrome, de David Cronenberg, lançado em 1983, e Hairspray, de John Waters, de 1988.
No primeiro, ela é uma ultrasexy apresentadora de um programa de TV de sadomasoquismo extremo, que enlouquece o executivo interpretado por James Wood. O longa tem cenas bizarras, com um erotismo violento, como aquela em que Debbie queima os próprios peitos com a ponta de um cigarro. Morena, ela está mais linda do que nunca, apesar do cenário aterrorizador. Já o filme de Waters é comédia rasgada e kitsch, detonando o American way of life, bem na veia irônica do Blondie, que hoje, aliás, continua lançando discos e fazendo shows. Numa entrevista recente, Deborah, belíssima aos 70, declarou, com um largo sorriso: “Cada um envelhece de um jeito. Nesse quesito eu tive uma sorte do cacete!”. Ted Bundy que o diga.
Foto: reprodução Andy Warhol