O almíscar provém de uma secreção glandular que certos animais produzem para atrair suas fêmeas.
Por Silvana Assumpção
O nome evoca misteriosas noites árabes e ventres ondulantes de odaliscas. Um misto de aroma e quiçá de sabor, de confeitos e de banhos turcos. Todo aquele vasto e maravilhoso mundo, enfim, que no fundo de nossas mentes ocidentais identificamos como o “Oriente” – não o real, que aliás não existe (como ensinou Jorge Luis Borges em sua conferência As Mil e Uma Noites, de 1977), mas aquele de nossa imaginação. Estamos falando do almíscar, em inglês musk, em francês musc, essa bela palavra que por si só já parece possuir um quê de “aromático” em todos os idiomas, talvez porque a encontremos nas descrições de quase todos os perfumes.
Provavelmente não há uma só fragrância moderna que não contenha almíscares. Assim mesmo, no plural, porque existem diversas variedades deles, presentes desde a perfumaria mais fina até incensos e produtos de higiene corporal e limpeza. Hoje praticamente não se usa mais a substância natural, e sim a produzida em laboratórios a partir de pesquisas iniciadas ainda no século 19. Mas o que é o almíscar natural? Em poucas palavras, com todo o respeito pelas sensibilidades mais delicadas, é “cheiro de macho”. Esse aroma precioso provém de uma glândula que certos animais possuem para produzir a substância com que marcam seus territórios e atraem as fêmeas. Não quaisquer animais, apenas aqueles de espécies ditas “almiscaradas”, tais como o boi-almiscarado e o rato-almiscarado. Alguns não mamíferos também são almiscarados, como um tipo de escaravelho e o aligátor americano. Não é que sob aquela crosta rude se esconde um ser capaz de atrair suas fêmeas com delicadas notas aromáticas de rosas?
Ninguém estranhe que os almíscares entrem na composição de perfumes concebidos para mulheres. Não há demonstrações de que eles tenham o poder de atrair sexualmente (como um feromônio, não apenas como um cheiro bom e sensual) os seres humanos, fêmeas ou machos. É claro que, sendo um produto já conhecido pelo grego Heródoto (no século 5º a.C.) e mencionado no livro das tradições judaicas Talmude (séculos 3º a 5º A.D.), não faltam os mitos e lendas a seu respeito. Uma delas diz que o macedônio Alexandre, o Grande (século 4º a.C.), exercia uma poderosa atração sobre as mulheres porque recendia naturalmente a almíscar. Ponha-se poder nisso: discípulo de Aristóteles, rei, herói, belo e ainda por cima almiscarado…
Outra lenda, talvez, mas levada suficientemente a sério para ter sido uma dos principais razões da difusão do almíscar pelo mundo, são seus poderes afrodisíacos. Essa substâncias cuja etimologia deriva do sânscrito muská (testículo), era largamente usada para fortalecer a “saúde masculina” por médicos árabes e tibetanos da Antiguidade. Guerreiros, cruzados, reis e viajantes como Marco Polo louvaram esse poder ao longo de toda a Idade Média e além. O almíscar foi muito consumido na corte de Catarina, a Grande, da Rússia, no século 18, e atribui-se a ele, ainda, a lendária potência sexual de Rasputin, o intrigante místico e político russo que viveu cem anos depois e o consumia regularmente.
Na medicina chinesa e de outras partes do Oriente, como a Índia e a Pérsia do famoso médico Avicena, no século 11, a substância também foi empregada para o tratamento das mais variadas doenças, como dores de cabeça, convulsões, epilepsia, histeria, insônia, dificuldades de audição, perda de olfato e até picada de cobra. E segue sendo usada até hoje, inclusive na afamada medicina ayurveda. Nas histórias de As Mil e Uma Noites e em modernas receitas árabes encontramos também o almíscar como um ingrediente gastronômico, usado em cremes e doces.
Perfume imortal
Embora todos os machos almiscarados produzam ricos aromas, o almíscar animal ideal para a perfumaria provém apenas do veado-almiscarado, bichinho tímido e de pequeno porte (pesa de 10 a 20 quilos) que habita montanhas do Leste Europeu e da Ásia. Ele se distingue dos demais cervos por não ter chifres, ostentar duas grandes presas e longas orelhas. Existem diversas variedades dessa espécie na Rússia, na Mongólia, na China (em especial, no Tibete), no Vietnã, na Coreia, no Nepal, na Índia, no Afeganistão. Dentro de sua glândula de musk, que fica entre o reto e a base do pênis, o almíscar é líquido no verão e se condensa como uma leve cera no inverno. Seu processamento é feito pela secagem sobre fornos, ou ao sol, operação durante a qual exala um odor insuportável, animalesco e urinoso.
O almíscar só começa a revelar as notas aromáticas que lhe dão fama – quentes, doces, sensuais, frequentemente descritas por perfumistas como “atalcadas” ou, ainda, semelhantes ao delicado perfume da cabeça de um bebê – depois de muito diluído. A complexidade é uma das suas maiores características, sendo por isso a essência aromática que mais admite descrições contraditórias. Além daquelas, diz-se também do almíscar que é amadeirado, terroso, apimentado ou ainda fresco, limpo e neutro!
Outra de suas propriedades mais valiosas para a perfumaria é um inigualável poder de fixação. Os árabes sabiam disso e misturavam almíscar na argamassa da construção de suas mesquitas. Uma delas em especial, edificada há mais de 600 anos na cidade de Tabriz, no Irã, recebe o nome de “A Perfumada” e ainda hoje exala o pungente aroma de suas paredes. Também ficou célebre o quarto de Jeanne-Antoinette Poisson – mais conhecida como Madame Pompadour, a amante do rei Luís 15 – no Palácio de Versalhes. Ele continuou recendendo a almíscar por muitos anos depois da passagem da poderosa cortesã para o outro mundo.
A forma que essa essência natural tão fabulosa adquire após a secagem é a de grãos escuros, quase negros. Para obter um quilo deles é preciso matar de 30 a 50 animais. Não admira que seja um dos produtos mais caros entre todos os de origem animal até hoje explorados. O almíscar mais valioso, chamado Tonkin, proveniente da China, teve seu preço estipulado em duas vezes seu peso em ouro no início do século 19, cotado pela Bolsa de Valores de Londres (fundada em 1801). Seu valor passou depois a oscilar ao sabor das quantidades enviadas para o Ocidente, principalmente de Xangai, e também da concorrência que começava a ser oferecida pelos produtos sintéticos. A crônica da bolsa londrina registra verdadeiras guerras travadas em torno dos preços do almíscar.
Quanto ao veado-almiscarado, durante séculos foi caçado por causa da substância, sendo a pele aproveitada secundariamente e a carne descartada por causa do forte cheiro da famosa glândula. A caça foi proibida pela Convention on International Trade in Endangered Species of Wild Fauna and Flora (Cities), em 1979, embora alguns países, como a Rússia, tenham leis nacionais que a autorizam dentro de limites. Seja proveniente da caça legal ou ilegal (que sempre existe), ainda há muito consumo de almíscar natural no mundo. Mas, desde 1980, pode-se dizer que ele foi praticamente abolido da perfumaria, ficando restrito ao emprego medicinal.
Os almíscares sintéticos
Considerando-se o gigantismo da indústria de perfumaria e higiene, é uma feliz circunstância que os produtos sintéticos estejam aí para evitar maiores danos à fauna e preços ainda mais altos nos perfumes. Sua primeira geração foi composta dos chamados nitroalmíscares, usados do final do século 19 até 1950. Entraram, por exemplo, no célebre perfume Chanel nº 5 e tiveram variedades caríssimas. Em 1927, um deles, produzido a partir de uma lactona (termo da química orgânica) descoberta na raiz da angélica, uma planta medicinal, chegou a ser vendido pelo astronômico preço de US$ 30 mil o quilo. Não é de estranhar que a pesquisa com essas substâncias sempre tenha sido extremamente valorizada, tendo rendido inclusive um Prêmio Nobel de Química ao croata Leopold Ruzicka, em 1939, por estabelecer a estrutura química do moscone. Esse é o nome dado ao principal composto odorífero do almíscar, que foi descrito em 1906.
Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) os químicos conseguiram encontrar formas mais baratas de obter almíscares de vegetais. Aquele caríssimo hoje é produzido por cerca de US$ 60 o quilo, e há outros bem mais baratos, de apenas US$ 15. A partir de 1951, uma segunda geração, já seguida de uma terceira (e atual) do mesmo tipo, substituiu os nitroalmíscares: foi a dos chamados policíclicos, que no final do século 20 já representavam 75% de todo o almíscar usado em perfumaria. Estão presentes em fragrâncias como White Linen, de Estée Lauder; Trésor, da Lancôme; Dune, de Christian Dior; Curious, de Britney Spears; Clair de Musc, de Serge Lutens, e, no Brasil, o conhecidíssimo Wild Musk Oil, da Coty. Há também o almíscar branco, desenvolvido para o perfume White for Her, do Emporio Armani, em 2001. Confere notas de “algodão fresco e linho” e encontram-se “acordes” dele também na Cologne, de Thierry Mugler. Se em geral a substituição de um produto natural pelo similar sintético não sugere coisa boa, no caso dos almíscares não há o que criticar.